O dia em que Dorival tomou café
Henrique Caixeta
Essa não é uma história real. Mas poderia ser. Essa história é escrita a partir de diversas outras histórias parecidas de Lucas, Felipes e Thiagos que assim como Dorival já foram taxados de “meninos problema”.
Dorival era o menino problema da vez. Toda aula fazia bagunça, péssimas notas, sempre se metia em confusão, batia nos colegas e desrespeitava a professora. Me lembro particularmente de um dia na sala dos professores, quando a professora de Dorival, durante o intervalo, falava das dificuldades que tinha com ele. Dorival não era meu aluno, mas ouvia tudo com ouvidos atentos. Eu também já fui um “menino problema”. A professora dizia que Dorival não conseguia ficar quieto em sua cadeira, estava sempre importunando os colegas e de cinco em cinco minutos pedia para beber água. Ela, é claro, não deixava. Isso quando não dormia na aula. As professoras das turmas mais novas ouviam atentamente e a aconselhavam. Elas já haviam sido professoras de Dorival e afirmavam que o menino sempre foi assim. Uma delas, uma professora mais velha, daquelas bem carolas, dizia que a família do menino era desestruturada, que chamou a mãe dele diversas vezes pra conversar, mas ela nunca podia. Um absurdo, diziam as professoras. A professora mais velha voltou a contar em detalhes coisas sobre a família do menino, coisas sobre como o pequeno não tinha pai, era criado pela mãe com a ajuda da avó e do tio. Contou sobre a condição financeira da casa, da situação de namoro da mãe, até a história do avô ela sabia. Era uma professora muito interessada na vida dos alunos, apesar do constante tom de julgamento moral.
Da janela da sala dos professores dava pra ver o pátio. De longe eu olhava Dorival, na fila da cantina, quieto, cabisbaixo. Devia realmente importunar os colegas pois nenhum dos meninos conversava com ele. As meninas só conversavam entre si naquela idade. Mas Dorival não conversava com ninguém. Não ria, não brincava, não mexia em nada. Só esperava, cabisbaixo, na fila da cantina. Era realmente estranho. A maior parte dos meninos nem lanchavam, aproveitavam o recreio para jogar futebol no pátio, mas quem escolheria Dorival pro time. Mesmo que fosse muito bom, quem o deixaria jogar? Lembrei do professor de educação física contando que nas suas aulas Dorival só queria saber de caçar briga. Ele conta que o menino piorou do último ano pra esse. No ano passado sua aula era no último horário e Dorival até tentava se enturmar e jogar com os colegas, mas era repudiado pelos meninos. Esse ano não, Todos chegavam super empolgados pra aula de educação física nos primeiros horários toda terça e quinta, menos Dorival. O menino chega, senta na arquibancada e quando o professor o obriga a jogar ele acaba arrumando confusão.
Na saída da escola reparei que Dorival caminhava sozinho. Ia sozinho até o ponto de ônibus e ia embora. Não era cabisbaixo como no recreio. Era na verdade sorridente. Parecia tranquilo fazendo aquele trajeto. Eu ainda consegui vê-lo subir no ônibus e cumprimentar o motorista que o recebeu com um enorme sorriso dizendo: Dorival! Hoje você saiu no horário em?! Viu o jogo ontem?
E foi embora.
No dia seguinte eu tinha o primeiro horário vago pra corrigir minhas provas. Era aula de artes. De repente ouvi uma confusão com choro no portão. Minha sala era a primeira após a entrada então era bem perto, pude ouvir que era um choro de criança. Ao chegar no portão me deparei com Dorival do lado de fora chorando com a mão na barriga. O porteiro, Antônio, dizia que não podia deixar ele entrar porque já haviam passado 30 minutos do começo da aula. A regra são 15 minutos. Dorival sempre se atrasava. Conversei com Antônio mas ele estava irredutível.
– São ordens?
– Ordens de quem?
– Ordens são ordens professor. Se abrir exceção pra ele, vou ter que abrir pra todo mundo?
– Mas ordens de quem Antônio??
– Da direção
– Então chame a diretora. O menino não pode ficar sozinho na rua.
– Eu não posso sair da portaria professor, toda hora chega gente.
– Então deixa o menino entrar e vai chamar ela que eu fico na portaria.
– Não pode. São ordens.
Então eu saí. Sentei ao lado de Dorival que ainda chorava mas agora bem baixinho e perguntei o que tinha acontecido. O menino me explicou que todo dia vai e volta pra escola sozinho, de ônibus e que hoje acabou se atrasando porque perdeu o primeiro ônibus. Eu sabia que Dorival ia e voltava sozinho, já observava o garoto a alguns dias. Com alguns anos de sala de aula tinha aprendido a ser bastante observador. Contudo, não percebi o mais importante sobre a vida de Dorival. Naquele momento, sentado no chão, chorando baixinho, Dorival me pediu:
– Professor, eu posso ficar aqui no portão até a hora do recreio e você pega merenda pra mim? É tudo o que eu como até minha mãe voltar pra casa.
Aquelas palavras me cortaram o coração. Dorival não era “problema”, ele tinha fome. A fome era o problema. O menino não corria na educação física do primeiro horário por fome. Brigava, aprontava, importunava e pedia pra beber água o tempo todo por fome. Dormia de fraqueza na aula e passava o recreio todo na fila da cantina pra pegar o lanche mais de uma vez.
Naquele momento eu o levantei e o levei na padaria que tinha na esquina da escola. Deixei ele escolher tudo o que quisesse e conseguisse comer nos 20 minutos que faltavam pro fim do primeiro horário. Tomei um prejuízo, o menino comia muito rápido. Mas foi o gasto mais feliz que já tive. Voltei pro segundo horário de mão dada com Dorival e passei pela portaria sem nem dar satisfação. Deixei o menino dentro de sua sala a contragosto da professora e combinei com ele: Todos os dias na entrada da escola eu estaria esperando ele com um café da manhã. Eu poderia ter feito com ele um combinado de dar o café se ele prometesse melhorar as notas, ou o comportamento. Mas com comida não se negocia.
Dorival, assim como várias crianças pelo Brasil tem na merenda escolar uma das principais refeições do dia. Não tem como falar em educação sem falar em fome. Precisamos pensar na qualidade da merenda, na quantidade da merenda,nas suas políticas de distribuição e sobra e tratar da educação como um todo, envolvendo saúde, alimentação, lazer, aprendizado. É preciso que a escola seja um organismo, bem articulado, funcional e, acima de tudo, bem alimentado.