Nunca foi tão importante ser decolonial
Daniel Machado da Conceição
Ao ponderar sobre o mundo e as muitas disputas nas mais diversas áreas e dimensões da vida humana, é perceptível que algo vai mal. Viver se tornou desprezível pelo fato de suportar a aberração de ter que afirmar a todo instante que sou sobrevivente. Morrer ou deixar viver não passa mais por uma questão ética, ou moral, é somente mais um estágio da futilidade das relações. A vida pode valer menos que uma frustração amorosa, financeira, de autoestima ou de ignorância.
Todo desenvolvimento tecnológico e o aperfeiçoamento da técnica, que proporcionam maior conforto e até aumentam nossa longevidade, não conseguem mudar nossa relação com o planeta e com outros seres humanos. As desigualdades são ampliadas e encaradas como justas. A precarização da vida, materializada na moradia, alimentação e trabalho, não comove mais. As desgraças de uma sociedade falida atordoam, ainda chocam, mas não provocam repulsa, pois o sentimento de sobrevivência é um alento que diz, continuamente, ainda bem que não foi comigo.
Observo uma intensificação da individualização que devasta relações familiares, vicinais, educacionais e mesmo empresariais. A necessidade de ser o melhor cria um hiato entre mim e o outro, gerando uma competição incessante e que estamos convencidos de estar correta. É imperativo perceber a fragmentação das relações e os jogos de interesse pela busca desenfreada por direitos, privilégios e vantagens pessoais.
O progresso e o desenvolvimento constante são a mola mestra de um modelo que não observa incongruências, ao estabelecer objetivos que devem ser superados infinitamente. Uma conta que não fecha e que precisamos discutir amplamente com base em um cenário catastrófico que se avizinha.
Uma hegemonia planetária que constrói relações reconhecidas como pertencentes à sociedade do cansaço, sociedade do consumo, sociedade do espetáculo etc., nomes que apontam para uma relação que gera cada vez mais desgastes no tecido social. Os remendos são ainda piores, efetuados com ideologias mais devastadoras com base no racismo, autoritarismo e neoliberalismo. A extrema-direita representa essa ideologia, com ideais que defendem o conserto da humanidade por meio de imposição, uma relação autoritária de fora para dentro e que aprofunda injustiças e desigualdades sociais e ecológicas.
A perplexidade está no fato dos sentimentos de empatia e alteridade, expressos pela partilha e generosidade, que passam a ser reconhecidos como diferenciais. Estamos tão entorpecidos pelo mau-caratismo, arrogância e agressividade, que quando acontece um simples ato de bondade desinteressado, o mesmo ganha notoriedade, quinze minutos de fama por fazer o correto.
Portanto, o momento para pensar e concretizar algo diferente chegou. Não é um processo simples e o primeiro passo é o inconformismo, inquietação e repulsa do nosso comportamento como sociedade. Os valores hegemônicos ocidentais enviesaram nossa visão de mundo. Pensadores como Guerreiro Ramos, Edgar Morin e Ailton Krenak, são algumas das vozes que alertaram sobre a necessidade de um novo paradigma para a humanidade.
A decolonialidade surge como uma das possibilidades, mas para sua efetivação é preciso estar descontente com o que acontece diariamente em nosso cotidiano. Decolonizar é diminuir os efeitos da colonização, questionando os padrões estabelecidos e valorizando o que foi invisibilizado. Sua proposta é romper com a dominação e a hierarquização de poder eurocêntrica estabelecida como modelo para o mundo ocidental.
Estar ou optar por uma postura decolonial implica que as preocupações sobre o modelo educacional, político e econômico não podem ser resumidas a índices de desenvolvimento descontextualizados da realidade local ou mesmo da interação com a natureza e o planeta. Por essa razão, nunca foi tão importante ser decolonial!
Ao desejar desconstruir os valores hegemônicos, é preciso reconhecer seus pontos críticos geradores de atrito social, exemplificados em conflitos armados, golpes de estado, atentados e mais sutilmente na imposição de projetos sem a participação coletiva. A visão decolonial pode influenciar a afirmação de um novo paradigma que destrói as estruturas de poder, saberes e práticas herdadas do colonialismo.
Uma ferramenta potente que permite entender opressões estruturais, privilegiando saberes até então marginalizados que sempre questionaram o que é verdade e que também tensionam a ciência. Sua efetivação deve ser exercida na educação, arte, política e, principalmente, no cotidiano, ao desnaturalizar privilégios. Decolonizar não é pura e simplesmente excluir uma coisa e incluir outra, é construir um novo paradigma para a sociedade do século XXI com a valorização daquilo que foi criteriosamente extirpado da humanidade, a força do coletivo e sua diversidade.
Portanto, nunca foi tão importante ser decolonial, por ser um convite à crítica e a uma nova prática para a vida em sociedade. Ela começa por uma educação mais consciente do seu potencial socializador; o reconhecimento da cultura local e saberes dos povos originários; maior ativismo e engajamento em pautas sociais; apoio e fiscalização na implantação das políticas públicas; e, melhora nas práticas ligadas ao consumo consciente. Ser decolonial fala de resistências e de ações coletivas, logo, ser e estar nessa posição contra hegemônica significa combater a individualização da sociedade.
Se a utopia de uma sociedade e um mundo melhor ainda fazem parte de um ideal, decolonizar é o lembrete de que podemos sobreviver e aproveitar a companhia uns dos outros em meio à finitude da nossa existência. A mudança é urgente e requer esforço para superar o que está dado, precisamos ouvir quem sempre resistiu ao estabelecer outro modelo de vida. Esse é um convite que todos devem aceitar, não por modismo, mas porque nunca foi tão importante ser decolonial.
Concordo intensamente que estamos entorpecidos em atender demandas que muitas vezes nem são nossas e muito menos atendem nossas necessidades.
A sociedade esta em uma matrix, e isso me encomoda pois me considero um inconformado.
Realmente estamos vivendo futilidades, ações sem sentido.
Precisamos urgentemente mudar através da educação e conscientização.