Não descuidemos do eugenismo! (um comentário a partir de Puro, de Nara Vidal)
Gisele Carreirão Gonçalves
Alexandre Fernandez Vaz
Não é incomum que a história da educação nos diga de uma época em que vigoravam entre nós os movimentos eugenistas. Mas, ao vivenciarmos uma parte importante da pauta política dos últimos anos, chama-nos a atenção o vigor com que se mantêm traços ou mesmo grandes linhas daquela época. O que parecia superado estava, no máximo, adormecido. Já foi o tempo em que temas progressistas eram anunciados até mesmo pelos conservadores, uma vez que não os assumir, mesmo que somente no campo discursivo, causava grande mal-estar. Tal ímpeto já não resiste, no entanto, à reação que, no melhor dos casos, é conservadora, e no pior é francamente regressiva.
Hoje a tônica é outra, e não se constranger em filiar-se a uma agenda retrógrada chega a ser motivo de orgulho, de hipotética coragem frente ao marxismo cultural, à ideologia de gênero, ao politicamente correto e a sabemos lá mais o que nessa retórica preconceituosa, bravejada em nome da família e dos bons costumes. Que jovens gritem por liberdade, especialmente em redes sociais, mas também nas ruas, evocando-a como um bem individualista e desligado da política e da sociedade, eis algo que não deixa de ser surpreendente e, especialmente, de sabor amargo. Algo falhou desde que o país se redemocratizou, ainda que precariamente e a duras penas, a partir dos anos 1980.
No interior desse quadro, um empreendimento precisa ser notado, já que algumas vezes passa camuflado, sem anunciar-se, mas está lá sedimentando brutalidades e formas de dominação que temos, às vezes passivamente, assistido. Referimo-nos ao supracitado eugenismo, que ganhou força no Brasil no início do século XX, chegando a compor o texto de nossa legislação maior: o artigo 138 da carta constitucional de 1934 selava o compromisso com a educação comprometida com ele. Chancelado cientificamente, o que lhe garante uma dose maciça de sedução, ele fomentou e dignificou o racismo e o capacitismo que já vinham impregnados no tecido social.
A defesa amparada nos cânones científicos valida a existência de sujeitos de segunda categoria, gente perigosa porque funesta e preguiçosa, ignorante e sediciosa, avoada e repugnante, fonte de defeitos físicos, mentais e morais que emergem em razão de condições genéticas inferiores ou simplesmente deficitárias. Não raro, estamos falando de etnias e classes sociais específicas como alvos dessas políticas. Portanto, a aposta numa raça humana apurada atrela-se à necessária inexistência dos estorvos sociais que demandam muitos cuidados e recursos financeiros vultuosos com instalações, profissionais e tratamentos, isso sem mencionar os casos de delinquência derivados desses seres que obstam o progresso. O aniquilamento de tais grupos muitas vezes foi autorizado via extermínio (o nazismo pode ser visto como a maior expressão dele), mas também fazendo uso de outras técnicas, como a institucionalização (retirando-os do convívio social) e a esterilização, mecanismo visto como eficaz para evitar que a falha genética se perpetuasse.
Por causa de tudo isso é preciso debatermos com mais afinco em contextos educacionais – seja com crianças e jovens nas escolas, seja na formação de professores e professoras – o eugenismo e sua presença entre nós. A propósito, é sobre ele o tão breve quanto instigante romance Puro, de Nara Vidal (Todavia, 2024). De sua escrita peculiar emergem personagens hierarquizados, com as autoridades – cidadãos de bem – comprometidas com investimentos que visam uma humanidade superior. Na outra extremidade, as vítimas deste projeto, os sem-valor, portanto, reificados, despudoradamente manipulados. A trama desenha ainda os embaraços entre a religião, ciência e política, corroborando o que já é sabido: a neutralidade é um engodo. A narrativa muito crua nos coloca diante de distintos lugares sociais ocupados por diferentes personagens, em que se destacam, entre outros, crianças alocadas a partir de suas condições de deficiência, etnia e classe social.
Embora não haja diálogos em Puro, mas somente monólogos verbalizados ou elaborados na mente de cada personagem, a convergência reacionária em torno dos ideais de limpeza racial é inequívoca, cada um exercendo uma função no grande projeto: o médico manipulador, a enfermeira suspeita, o padre, o vendedor de enciclopédias que sonha que o filho morra, sua esposa e sua sogra, o menino que estuda a língua alemã e quer ser prefeito, as três irmãs com suas atividades no casarão misterioso. Várias dessas figuras se constroem a partir de desejos reprimidos e da perversidade que dali emerge, mas o trunfo não é psicologizante, mas social: um projeto de sociedade se desenha e se vê materializado pela convocação de pessoas dispostas a tudo para chegar à fantasia regressiva da ausência de diferença. Para que ela possa ter força material, é preciso que o ódio ao outro seja bem cultivado – uma prática, aliás, em que o Brasil vem há muito se destacando. Este outro pode ser qualquer um, contanto que seja visto como menor e, ainda, para tomarmos emprestada uma expressão de Judith Butler, não passível de luto.
Se a literatura ficcional nos forma é porque ela oferece, a seu modo, cenários e mundos que existem apenas na imaginação; mas para que esta seja possível, é preciso que as condições para sua existência estejam postas. Portanto, que não esqueçamos, e que não deixemos que se esqueça, dos longos tentáculos do eugenismo.