Eu vim de lá – Relato de educadores musicais negros (Parte 2)

Vinni Carlos
Coletivo Geral Infâncias

Antes de qualquer assunto sobre racismo, devemos entender que, no Brasil, esse debate é estrutural. Além disso, devemos lembrar que, há algumas gerações atrás, nossos descendentes eram escravizados. E que apesar da Lei Áurea ter “liberto” negras e negros da escravidão, não houve uma reposição na sociedade, em caráter econômico, social e cultural. Os negros não tiveram nos direitos a distribuição de riqueza.

Historicamente, parte da população branca aproveitou-se do trabalho escravo para enriquecer. Nossos antepassados negros ficaram à margem da sociedade, sendo restringidos a direitos básicos, como educação. Além disso, podemos citar a capoeira, que foi um movimento cultural negro considerado crime pelo estado, só sendo uma prática legalizada em 1937 pelo então presidente Getúlio Vargas.

O que podemos refletir sobre isso? Bom, posso dizer que ficou uma herança estrutural para os negros no Brasil. Que ainda há aparelhamento social que favorece a mentalidade “Casa Grande e Senzala”. Como eu sempre escutei desde pequeno: “Você tem que saber qual é o seu lugar”. E qual é o meu lugar? Qual o nosso lugar como pessoa negra? Nas profissões subalternas? Como educador e artista, eu encontrei meu lugar. Sempre me emociono com a canção de Dona Ivone Lara:

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou
Pra pisar nesse chão devagarinho

Foi o que aconteceu quando cheguei à Universidade. Quando descobri um mundo de possibilidades que nunca me foram apresentadas. Até ali, foi o ponto mais longe onde eu já tinha chegado. E como sempre fui ensinado a ser obediente, para não apanhar da polícia, por exemplo, foi na educação e na música que encontrei meu lugar de fala e descobri um mundo de desigualdades e injustiças. Foi no samba, no forró, no brincar, nas rodas de cirandas e cantorias que descobri minha força e meu espaço. Como continua na letra “Alguém me avisou”:

Sempre fui obediente
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que eu juntei-me aos bambas
Pra me distrair
Quando eu voltar à Bahia
Terei muito que contar
Ó padrinho não se zangue
Que eu nasci no samba
Não posso parar

O mundo possível e ideal apresentado desde criança para mim é o mundo dos brancos, como a cultura europeia. Como exemplo, o Natal que entendíamos, não apenas pela televisão ou pelas músicas que nós aprendíamos, que na verdade era ensinado na escola, é aquele Natal com neve, árvore de Natal de pinheiros e um velhinho branco de bochechas rosadas. Que daria presentes às crianças comportadas e por ironia do destino, nunca ganhei nada. Outra ironia do destino ou só minha mesmo, nos meus Natais só chovia e nunca caiu neve.

Além disso, a música de malandro era o Rap, enquanto o Rock era música boa de rebeldia. Que o ápice cultural era a música “erudita”. Bom, quando cheguei a universidade, não foi diferente. O repertório musical para a musicalização era majoritariamente de concerto europeu. “Ah bom, você quer algo diferente? Escute Beatles”. Mas tem problema usar isso? Bom, creio que a resposta seja mais complexa do que sim ou não.

Mas por outro lado, e a nossa riquíssima cultura? Digo daquela que surgiu nos morros, nos terreiros, nos interiores de cada estado, dos caipiras, dos nordestinos, que ainda sobrevivem nos centros urbanos, que simbolizam um ato de resistência da cultura negra. Será que esse amontoado cultural não indica nada didático? Pois foi isso que com um tempo comecei a refletir.

Andando em rodas de brincantes, eu me senti pertencente a cultura do meu país, dos meus antepassados. Como educador negro, acho isso importante: perpetuar a cultura negra, do meu país, para que ela não enfraqueça, muito menos morra e que seja sim uma forma de resistência, de voz, de representatividade onde quer que eu esteja.

Como Isaac disse no seu texto (que foi publicado na semana passada como Parte 1 destes relatos), é importante romper com as estruturas racistas da sociedade. Mas esse trabalho é só meu? Parafraseando a filósofa Angela Davis: “não devemos ser somente não racistas ou contra o racismo, mas sim antirracistas”. Acredito que como educador musical, meu papel não é só de defesa, mas de fala. Romper o silêncio é algo essencial para mudar a nossa sociedade. A herança que nos foi deixada deve ser superada.

Me sinto fazendo trabalho de formiguinha, principalmente atuando em lugares onde a maioria dos discentes e docentes são pessoas brancas, mas continuo. Acho que meu papel é de ser referência, alguém que quebre os paradigmas tão penetrados na nossa sociedade. Sonho com um país justo. Mudar o que precisa ser mudado, dizer o que precisa ser dito, fazer o que precisa ser feito, não é romantismo nem mimimi, é cidadania.

 

Sobre o autor
Vinni Carlos (Vinícius Carlos Eustáquio Pereira) é licenciado em Música e bacharel em Música Popular com habilitação em contrabaixo pela UFMG. Atua como músico e educador principal, principalmente na educação infantil. É membro do grupo Bambulha: Música para a Infância, do MOVMI (Movimento, Música e Infância), e também do GPMUSICOG: Música, Cognição e Desenvolvimento Humano. E-mail: v.carlosbass@hotmail.com. Instagram: @vinni.carlos


Imagem de destaque: acervo pessoal do autor

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