Espaços escolares em Recife e a organização de trabalhadores em busca de instrução.

Yan Soares Santos1

Em Pernambuco, durante um século XIX, marcado pelo crescente investimento em modernizações urbanas, uma preocupação da elite e dos poderes públicos foi a reordenação social. Aquele período distinguiu-se pela diversidade de leis e ações voltadas à organização e reorganização da instrução na província, por vezes, dedicadas direta e indiretamente à instrução de trabalhadores. 

Durante a segunda metade do século XIX, as aulas públicas primárias eram divididas entre escolas do sexo masculino e feminino (as aulas mistas, para ambos os sexos, só foram instaladas em 1876), e seu quantitativo variou ao longo dos anos, chegando a cerca de 496 no ano de 1886. Entre os anos de 1880 e 1888, 94 instituições de aulas particulares (aulas de primeiras letras para o sexo feminino, aulas de primeiras letras para o sexo masculino, aulas mistas, aulas noturnas, colégio femininos, colégios masculinos e colégios mistos) anunciaram no jornal Diário de Pernambuco a abertura de suas aulas, no Recife. 

Outras instituições de ensino primário, secundário, profissional, ou de atuação assistencialista, mantidas pelos poderes públicos, iniciaram suas atividades ao longo do século XIX, tais como o Ginásio Pernambucano (1825), o Arsenal de Guerra (1832), a Companhia de Aprendizes Artífices (1837-1844), Colégio de Órfãs (1847), a Escola Normal Oficial (criada em 1864 e tornada “mista”, em 1875); a Escola de Geometria Prática (1874), o Instituto Industrial Artístico e Agrícola da Colônia Orfanológica Isabel (1874-1904); aulas de obstetrícia no Hospital Pedro II e aulas de taquigrafia (1876).

Apesar da existência das instituições mencionadas, os trabalhadores atuantes no Recife agenciaram suas próprias propostas de instrução. Ao longo do século XIX e primeiros anos da Primeira República, os trabalhadores se organizaram em associações e inauguraram suas atividades na cidade do Recife, foram elas: Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais (1841); Sociedade Propagadora da Instrução Pública (1872); Grêmio dos Professores Primários de Pernambuco (1884); Sociedade Beneficente dos Machinistas de Pernambuco (1890); Associação dos Empregados no Comércio de Pernambuco (1886); Sociedade Beneficente Monte-Pio Português (1901); Sociedade Beneficente dos Empregados da Companhia de Trilhos Urbanos do Recife, Olinda e Beberibe (1902); Sociedade Beneficente dos Empregados da Estrada de Ferro (1903); Sociedade Cooperativa dos Operários de Camaragibe (1903).

Cada associação, composta por trabalhadores de ofícios específicos, tinha diversos objetivos e propostas de atuação voltados, principalmente, para o auxílio mútuo (em geral, proteção financeira direcionada aos casos de doenças, invalidez ou morte do associado, quando sua família receberia certo ordenado), e em algumas delas, para a abertura de cursos “profissionais” direcionados aos seus associados. Podemos citar dois exemplos.

A Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais composta, em sua maioria, por trabalhadores negros e pardos, instalada, desde o primeiro reinado (e com status social) crescente, instruiu a si e aos seus, desgarrando-os dos estigmas sociais vinculados à escravidão e à depreciação ao trabalho manual. Em 1881, a associação inaugurou o Palacete do Liceu de Artes e Ofícios, edificado em frente ao Palácio do Campo das Princesas, local de moradia e prédio administrativo da presidência da província (hoje do Estado de Pernambuco). O Liceu contou com um curso “artístico” voltado para o sexo feminino (com aulas de corte, costura e bordados), comum curso “profissional” voltado para o sexo masculino (com aulas de artes gráficas e marcenaria), com um teatro, museu pedagógico e sala de música.

A Associação dos Empregados no Comércio de Pernambuco, por sua vez, foi composta por caixeiros, contadores, aduaneiros, os quais, além da autoproteção, abriram um curso comercial para formar novos trabalhadores no comércio da cidade: a Academia do Comércio (1911). Ela promoveu três níveis de cursos, habilitando seus alunos para atuarem como pequenos auxiliares no comércio (os caixeiros), guarda-livros (responsáveis por escriturar e manter em boa ordem os livros mercantis das empresas comerciais, função atualmente demandada aos contadores), e até mesmo para os cargos de “agente consular” e “funcionário do Ministério das Relações Exteriores”.

Durante um período em que a instrução foi um privilégio para poucos, mas, uma aposta das nações em prol do “progresso” e da “civilização”, os trabalhadores, ao instalarem seus cursos “profissionais” conseguiram recursos dos poderes públicos para a manutenção de suas atividades. Aqueles recursos garantiram longevidade ao Liceu de Artes e Ofícios (até 1950) e à Academia do Comércio (até 1925). 

As ações coletivas daqueles trabalhadores, que se organizaram e, em comum, atuaram em prol da formação escolarizada de seus membros, com o intuito de favorecê-los, de proteger e controlar seus saberes teóricos e práticos, além de monopolizar a oferta de seus serviços profissionais, nos fazem querer saber: durante o bicentenário da Independência (e sempre), quais outras ações foram (e são) possíveis aos trabalhadores? 

 

1Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

 

Para saber mais:
LIMA, Dayana Raquel Pereira de. Sinais do “desconforto” no exercício da docência pública em Recife e Olinda (1860-1880). Recife: UFPE, 2014. (Dissertação de Mestrado).

SILVA, Adriana Maria Paulo. Processos de construção das práticas de escolarização em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007.

SANTOS, Yan Soares. Associativismo e docência no Recife: estratégias de atuação sociopolítica de trabalhadores docentes entre os anos de 1872-1915. Recife, PE: UFPE, 2021. (Tese de Doutorado).


Imagem de Destaque: LICEU DE ARTES E OFÍCIOS. Seção de artes gráficas do curso profissional, foto n. 20 (Universidade Católica de Pernambuco – Biblioteca – MU 133 FOTOGRAFIAS). Disponível em: https://www1.unicap.br/pergamum3/sumarios/00001b/00001b5d.jpg. Último acesso em: 04/02/2020.

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