Escrevivências: possibilidades de uma educação antirracista no Brasil
Raira Oliveira
Esse texto tem o intuito de abordar as possibilidades e urgências de uma educação antirracista no Brasil. Assim, para que ficasse mais claro, utilizei o conceito de escrevivência, método desenvolvido pela escritora e linguista brasileira Conceição Evaristo. Sendo esse um termo que busca pensar práticas educativas que considerem, de modo plural, as perspectivas de sujeitos historicamente marginalizados, propondo uma escrita em que as vivências e memórias estão totalmente entrelaçadas e imersas.
Devo começar dizendo que, desde o primeiro livro de Conceição Evaristo que coloquei em minhas mãos, fiquei completamente fascinada, principalmente pela forma como a autora aborda questões tão urgentes de uma maneira igualmente sensível. Dessa forma, Evaristo, em todas as suas obras, escreve de alguma maneira sobre o silêncio imposto à mulher negra na sociedade em geral e, especificamente, na produção literária brasileira, em que essa costumava comparecer somente como objeto estereotipado pelo discurso hegemônico.
Diante de uma sociedade racista, é possível pensar na escola como uma instituição que pode favorecer, em alguma medida, formas de transmissão sutis e consolidadas de diversos tipos de discriminação, dentre as quais a difusão de representações pejorativas sobre a negritude. A formação de um discurso discriminatório e racista revela-se, dentre outros fatores, em materiais didáticos que omitem a existência e o posicionamento de grupos étnicos em diversos momentos da história e no despreparo de educadores para tratar de temas como as relações étnico-raciais.
A forma como o negro é nomeado e definido no ambiente escolar pode ser compreendida pelo modo como sua história é contada. Isso porque a cultura na escola se materializa por meio de gestos e ações, muitas vezes intencionais, desde o silenciamento de grupos minoritários nas propostas curriculares e nos livros didáticos até as brincadeiras que refletem o racismo.
A própria reflexão sobre os corpos presentes em sala de aula, dos professores e dos estudantes, também diz sobre como o poder é legitimado nesse ambiente, assim como traduz o modo neutralizado como o conhecimento é passado, como se este não surtisse efeitos naqueles que fazem parte dos processos de ensino-aprendizagem. No entanto, entendemos que o corpo carrega uma história e ser um educador branco é muito diferente de ser uma educadora negra, por exemplo. Dar-se conta do espaço de fala que possuem um homem branco e uma mulher negra é também romper com barreiras políticas dentro da própria sala de aula, em vez de neutralizar a presença do corpo no espaço escolar (HOOKS, 2013).
Seguindo nessa visão de que cada corpo carrega uma história, é importante entrar no conceito de escrevivência comentado ao início do texto. Nessa construção, segundo Conceição Evaristo, a literatura e a escrita são, ao mesmo tempo, uma forma de suportar o mundo e um modo de se inserir nele. Vemos, nesse sentido, o ato de escreviver sendo possível na prática pedagógica ao permitir a auto inscrição em um contexto tão higienizado, lido como neutro e objetivo, mas que traduz uma série de relações de dominação e opressão.
Desse modo, assumimos que a assunção de si e a proposta de uma educação como prática da liberdade se articulam com o conceito de escrevivência de Evaristo, definido pela autora como “uma ação que pretende barrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz das mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sobre o controle dos escravocratas”. Nesse sentido, a escrevivência constitui memória a partir do momento em que permite a construção de novos universos, outros sistemas simbólicos diferentes do dito hegemônico, permitindo novos olhares e novas formas de existência. A escrevivência é uma escrita para além de uma descrição de si, sendo esta pautada por uma vivência; não se qualifica como uma narrativa meramente narcísica, visto que não se encerra em si, mas diz respeito a uma coletividade.
Trata-se de questionar, então, o modo como a questão racial é lida em sala de aula, em alguns momentos como sem importância, e em outros como recorte qualificador, e não como atravessadora de experiências que determinam oportunidades e locais de poder. Portanto, a inserção do tema das relações raciais ultrapassa a inclusão de conteúdos no currículo, exigindo uma nova postura no ambiente escolar que coloque a temática enquanto fator que atravessa também as relações. Lidar com o corpo e com a assunção de si dentro de sala de aula é estar diante de diferentes histórias que influenciam as relações no espaço educativo e, portanto, a forma de lidar com o próprio saber.