Democracia e maioridade: kids e a educação militar 

Alexandre Fernandez Vaz

Há 30 anos, um filme sacudia os cinemas e deixava desconfortáveis os espectadores. Com uma linguagem que mimetizava o comportamento de seus personagens, o tão controverso quanto talentoso fotógrafo Larry Clark estreava nas telas com Kids (1995), relato de um dia na vida de jovens urbanos e periféricos de Nova York em tempos de medo em relação à epidemia de aids. Muita coisa mudou de lá para cá, mas a obra segue desafiadora, tanto na narrativa quanto em sua forma. O diretor voltaria ao tema da juventude em várias ocasiões, como em Roqueiros (2006), em que retrata esqueitistas latinos vivendo em Los Angeles. Atualizava, assim, seu interesse sobre essa experiência antes social que etária, cujas vicissitudes, algumas delas extremas, lhe acompanhavam desde as fotografias de Tulsa, de 1971.

Bem, eis que há poucos dias fomos assaltados pela presença de outros kids, os tais Kids Pretos,  com são conhecidos os membros das Forças Especiais do Exército Brasileiro, gente supostamente preparada para o enfrentamento da “guerra irregular”, capacitados a aplicar técnicas de sabotagem, indução de comportamentos de insurgência entre civis, resistência à tortura. Militares baseados nessas forças, aliados com mais um punhado de conspiradores, teriam, segundo a Polícia Federal, elaborado um plano para matar presidente e vice-presidente do Brasil eleitos em 2022, assim como um juiz do Supremo Tribunal Federal. No caso deste último, a “missão” de assassinato teria sido desencadeada, mas depois interrompida por problemas logísticos.

A presença de uma cor na maneira como são chamados aqueles militares se deve ao fato de levarem sobre as cabeças uma boina preta. Mas, chama a atenção que a isso se agregue kids, crianças ou, conforme o contexto, filhos, em língua inglesa. A palavra é comumente utilizada no Brasil como maneira de atribuir qualidade superior a lugares e distinção aos que os ocupam, a exemplo dos “espaço kids” em restaurantes, supermercados e assemelhados. Mas há outros registros. Na minha adolescência, li o livro de Pat Garrett, antigo amigo que, feito xerife, matou o assassino e ladrão de gado Billy The Kid, em 1881 no Novo México. Assisti também ao filme de Sam Peckinpah, Pat Garret and Billy The Kid, de 1973, com bela trilha sonora de ninguém menos que Bob Dylan. Mais ou menos na mesma época sentia-se na TV as ameaças em formato de propaganda sobre o alistamento militar obrigatório para os rapazes que completavam 18 anos. Eram tempos de ditadura, a mesma cujos ecos não param de se fazer escutar.

Enquanto para os filmes e o livro que mencionei acima faz todo o sentido a denominação kids, por que adultos treinados para a “guerra irregular” são chamados de crianças? Talvez a resposta tenha a ver com a tentativa de afirmarem-se como necessariamente jovens, apesar da idade e, portanto, com muita disposição para suas peripécias. Não sei. Mas, além de me parecer absurda (ou talvez por isso mesmo), a expressão dá o que pensar sobre a vida militar em geral. Completaram de fato o percurso à maioridade, no sentido da autonomia propugnada pela tradição iluminista, adultos que passam o dia vestidos de farda, como se estivessem a ponto de entrar em ação a qualquer momento, mesmo quando se dedicam à burocracia dos escritórios? Como conviver em uma democracia, sem ameaçá-la a todo momento, se a condição de autonomia não é alcançada, se mesmo sem risco de guerra trajam-se de verde, azul ou branco, fantasiando que estão em campos de batalha? 

Os militares têm enorme presença na história nacional. Apenas para destacar dois momentos, lembremos da posição central do Duque de Caxias, líder do banho de sangue produzido no século dezenove, e de Deodoro da Fonseca, marechal que, mesmo sendo monarquista, liderou o rompimento institucional que nos levou à República em 1889. De lá para cá nunca estiveram ausentes da política, tendo tentado algumas vezes usurpar o poder central, não sem alcançar pleno êxito em 1964. As catastróficas consequências disso nós as conhecemos. O impulso de rompimento com a democracia que permanece na caserna precisa ser superado. Observe-se que o ex-presidente da República, ex-capitão do Exército formado nos anos da Guerra Fria, em meio às acusações da tentativa de impedir que seu sucessor assumisse o cargo, admitiu ter pensado em assinar um decreto de estado de sítio, assim como disse que as condições para dar um golpe, diferentemente de 1964, agora não estavam dadas. É isso operar dentro da normalidade?

Não há dúvidas sobre a pertinência de Forças Armadas em um país contemporâneo e com interesses na geopolítica mundial. Os vultuosos investimentos que o governo federal a elas destina testemunham tal importância. É por isso que precisam estar a favor da democracia, renunciando aos desvarios autoritários, entre os quais está o de que seus membros são mais disciplinados, responsáveis e patriotas, quando comparados aos civis. É fundamental para isso que as academias militares se renovem, afastando-se definitivamente das paranoias da Guerra Fria, de delírios que sugerem que o perigo comunista está à espreita e que é com armas na mão se vai garantir a dinâmica democrática. Mas, isso não vai acontecer enquanto não for o Ministério da Educação o responsável último pelos currículos castrenses. Estamos andando na contramão do óbvio, militarizando as escolas e evitando a todo custo qualquer tipo de agenda que possa desagradar a caserna, como se seus habitantes fossem os patriarcas da nação. Não, eles são apenas, como muitos outros, funcionários públicos. Que, então, amadureçam para a vida democrática. Já passou da hora.

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