Cyberbullying na Era Líquida:
Diálogos entre Bauman e Lévy
para uma ação coletiva
Paulo Henrique de Souza
“As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.” Zygmunt Bauman
“Muitos não acreditam, mas já éramos muito maus antes da internet” Pierre Lévy
A geração mergulhada na conectividade vive um paradoxo angustiante: nunca os seres humanos estiveram tão interligados tecnologicamente, e nunca se sentiram tão isolados em sua dor. Para decifrar essa contradição, as reflexões de Zygmunt Bauman e Pierre Lévy oferecem lentes complementares. Bauman, com sua crítica mordaz à modernidade líquida, desnuda a fragilidade dos laços humanos na era digital. Lévy, por sua vez, ilumina o potencial transformador da inteligência coletiva quando orientada por valores éticos. Juntos, eles traçam um mapa para enfrentar um dos males mais perversos dessa era: o cyberbullying.
Bauman nos alerta que vivemos em um mundo onde as relações se assemelham a fluidos – escorrem entre os dedos, sem consistência ou permanência. Nessa liquidez social, o mal se banaliza. O agressor online, escondido atrás de avatares e pseudônimos, não testemunha o sofrimento que causa. Como o sociólogo polonês observou, “a tela transforma a crueldade em um ato sem rosto, sem corpo, sem remorso”. A distância física e emocional gera uma cegueira moral: as lágrimas da vítima evaporam antes de alcançar os olhos de quem as provoca. O resultado é uma cultura do descarte aplicada às relações humanas, onde o outro se torna objeto temporário de diversão ou ódio. Trata-se de um paradoxo ético.
Pierre Lévy, contudo, recusa o determinismo tecnológico. Para o filósofo da cibercultura, o virtual não é um território à parte, mas um espelho ampliado da sociedade. Se o cyberbullying floresce, reflete sementes de violência já plantadas no mundo real. Lévy insiste, porém, que a mesma arquitetura digital que propaga o veneno pode ser reprogramada como antídoto. Sua noção de inteligência coletiva carrega uma promessa: quando indivíduos conectados direcionam sua capacidade colaborativa para o bem comum, surgem redes de proteção e denúncia. Mas isso exige, como ele mesmo afirma, “uma ética do cuidado inscrita no código das interações”.
É aqui que as visões se entrelaçam. Bauman denuncia a desresponsabilização líquida – a ilusão de que ações online não têm consequências reais. Lévy responde propondo ecologias cognitivas: ambientes educativos que integram tecnologia e humanismo, formando jovens não como meros usuários, mas como arquitetos conscientes do espaço digital. Para as escolas, isso significa ir além das palestras esporádicas. É necessário criar laboratórios de convivência digital, onde alunos experimentem dilemas éticos em simulações práticas. Professores devem ser capacitados como mediadores que identificam dinâmicas de exclusão até mesmo em algoritmos aparentemente neutros. Como Bauman lembra, “na era líquida, até o silêncio é uma ação” – compartilhar uma humilhação ou omitir-se diante dela são atos igualmente políticos.
Às famílias, cabe um papel de âncora afetiva nesse mar de incertezas. Bauman descreve a “solidão na multidão conectada” como o paradoxo definidor de nosso tempo. Contra esse vazio, pais e mães devem construir oásis de escuta autêntica – espaços desconectados onde emoções sejam nomeadas, não reduzidas a emojis. Lévy propõe a mediação ativa: em vez de impor regras autoritárias, co-construir e cocriar com os jovens pactos de uso digital. Explicar que privacidade não é sinônimo de segredo, mas de soberania sobre a própria identidade – um antídoto contra o que Bauman chamou de “vigilância líquida”, onde todos vigiam e são vigiados.
A solução, portanto, reside na síntese. Reconhecer com Bauman que o cyberbullying é filho da desumanização por distanciamento. E abraçar com Lévy a convicção de que a tecnologia pode retecer o tecido social rompido. Denúncias anônimas em escolas são apenas o primeiro passo; é preciso fomentar comunidades de cuidado digital, onde cada usuário se sinta corresponsável pelo bem-estar coletivo. Como Lévy ensina, “o virtual é o espaço onde gestamos o futuro”. E esse futuro será mais humano se respondermos ao apelo de Bauman: reinserir o rosto, a voz e a dor do outro no centro da experiência digital.
A luta contra o cyberbullying não é uma guerra contra a tecnologia, mas uma batalha pela alma da conexão. Exige que escolas transformem algoritmos em ferramentas de inclusão. Que famílias convertam telas em pontes de diálogo. E que todos – jovens, educadores, pais – lembrem-se da advertência final de Bauman: “A tecnologia nos aproxima, mas só a compaixão nos une”. Na arquitetura invisível do ciberespaço, cada like, cada compartilhamento, cada silêncio diante da agressão é um tijolo. Cabe a nós decidir se construímos um muro ou uma praça.