Acabo de assistir ao filme e a sensação é de um nó no estômago. Respiro e rememoro as primeiras palavras de Freire: Nós, conscientes de nosso inacabamento, vivemos em permanente estado de procura. E procura pressupõe esperança. Esperançar para Freire, é verbo que nos faz sonhar: otimismo propositivo, como disse certa vez Caetano. Sinto que preciso me agarrar a esta lembrança, deixar as palavras iniciais ressoarem em mim, para conseguir vislumbrar pontes, voos, saltos, diante da vertigem do abismo. O filme nos apresenta um caleidoscópio de imagens, como um espelho mágico que mostra o que a gente tenta esquecer. Você olha para o abismo e ele te olha de volta. E ao olhar, você vê. E compreende que não é possível falar de educação sem falar da vida que vivemos juntos. Enquanto isso, me recordo de uma música:
A cura da AIDS morreu de fome no interior do Maranhão
A cura do Câncer morreu de esquistossomose no interior de Minas Gerais
Físicos, músicos, matemáticos
Sendo salvos da fome pelos caranguejos no mangue
Morreu o filósofo Ianomami
Mataram o filósofo Ianomami
Crackolândia
São Paulo
Futuros empresários
Viram excelentes traficantes
(…)
O Prêmio Nobel Brasileiro cheira cola
Pede esmola
No centro do Rio de Janeiro
(DESPERDÍCIOS, CANÇÃO DE TIANASTÁCIA)
O filme nos traz cenas da barbárie, de um país onde a marca da violência aparece impressa em nosso cotidiano, em nossa história, em nossos corpos, em nossas escolas… Faço um exercício de avistar outras imagens possíveis; imagens que sejam tangíveis. Como flores que crescem em um campo árido; apesar de. Minhas palavras talvez te soem ingênuas, afinal…
Para se empreender a mudança é preciso se indignar. Olhar para a realidade que o filme nos mostra e bradar: “É insuportável”. Sentir a urgência de construir imagens outras. E como é que daqui a cem anos, no bicentenário de Paulo Freire, vamos poder assistir a “Reverberações Freirianas – A continuação”? Que imagens estarão lá? Que palavras? Proponho a você, pessoa leitora, um devaneio: como é a escola que queremos construir? Que projeto de sociedade? Como é o seu sonho de país?
Durante muito tempo eu me sentia incomodada com esse lugar chamado escola. Inquietava-me a escolarização dos nossos tempos, dos nossos corpos, dos nossos desejos. Um lugar onde aprendíamos a obedecer e de muita, muita violência simbólica.
Até que fui, por necessidade, trabalhar nessas instituições comparadas a prisões, conventos, hospitais. E ali, entre tantas adversidades, descobri um tesouro. Ao atuar em uma escola estadual muito especial – a Escola Estadual Olegário Maciel, localizada no centro de Belo Horizonte –, percebi a riqueza das relações afetivas construídas cotidianamente. Os problemas estavam ali, sim. Mas havia também uma vida pulsante que vibrava nos encontros.
Vislumbrei que a escola pública é um lugar privilegiado para experimentarmos o exercício da democracia. Convívio com pessoas tão diferentes entre si que constroem cotidianamente o “como viver juntos”. Sonho com a escola como lugar de afeto e delicadeza, de diálogos e convivência democrática. Diante da dureza das imagens busco refúgio nos sonhos que nutrem a esperança; no verbo esperançar que impulsiona uma ação no mundo, dedicada à transformação. Assim consigo digerir o passado, elaborar o presente e sonhar o futuro.
Pergunto-me como recuperar o ideal freiriano de transformação de mundos: “o mundo não é, está sendo”. Como deixar as palavras de Freire REVERBERAREM em nossas concepções e práticas e, diante da perplexidade, inventar modos de resistência, criar rupturas, abalos, intervalos e respiros na confusão persistente – sem cair no conto da professora salvadora, que aqui não é Hollywood e eu, assim como Thaís Gulin, “prefiro os nossos sambistas”. Diante da brutalidade ecoam aqui as palavras de Marcela, jovem negra estudante de uma escola pública em São Paulo, agredida à época das ocupações: “cuidado que a cadeira é da escola”.
Luciana Cezário é professora Efetiva do Departamento de Arte, Design e Tecnologia do CEFET/MG. Mestra em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG, na linha de pesquisa Artes da Cena. Graduada em pedagogia com formação complementar em arte (Faculdade de Educação/UFMG) e em Artes Visuais – Licenciatura (Claretiano Centro Universitário). Atua como professora desde 2004. Busca articular performance e antropologia; arte e vida; arte e não-arte.
Email: lucianacmmelo@gmail.com
Reverberações Freireanas é um filme para todos os espaços, mas especialmente para a sala de aula. Com tempo de exibição de 15 minutos, o curta foi pensado para caber em uma hora-aula.
Assista ao filme no YouTube ou baixe ele na íntegra para exibir como preferir.