Copo d’água
Pedro Amaral
Aliviava a sede às seis e meia da manhã. A vida já acontecia na roça onde Manoel viajava em todas as férias de julho. Nessa época, acordar esse horário era se deparar com um frio gostoso, o som das galinhas e os cachorros latindo. Era passear para ver os porcos, as vacas, encontrar um gato perdido aqui e acolá e fazer amizade com formigas.
Com seus primos, brincava de pular nos colchões, tomava café cedo, jogava peteca, bola, esconde-esconde. Se alegrava quando ganhava, chorava ou esbravejava quando perdia. Se acalmava observando o cuidado com as plantas, a feitura do almoço e a tiragem do leite. Ao entardecer, aprendia a jogar Buraco e Três Vermelho com sua tia. À noite, observava os adultos jogando truco, enquanto compartilhavam garrafas de cerveja e tira gostos.
Falar de brincadeira, para mim, é um dos desafios mais complexos. Lembro na graduação em Educação Física, quando alguns jovens abandonaram o curso não apenas porque descobriram que precisariam estudar bioquímica e anatomia, mas também porque compreender as dimensões sociais, históricas e culturais do brincar, nos pegou de surpresa.
Apesar dessa atividade ancestral humana não receber o devido destaque e crédito pelas complexas produções artísticas, literárias, políticas, filosóficas ou educacionais produzidas ao longo de nossa sociedade, brincar mobiliza o ser humano a construir os elementos estéticos de sua cultura. Um sujeito não se interessa pelo brincar apenas pela diversão, mas também para compreender quem se é, e de qual mundo faz parte.
Em diversas discussões que participei, sejam experiências recentes e passadas, como pessoa que brinca, ou professor que ensina a brincar, é que, o que mobiliza o outro a ser enredado pela ludicidade é o pertencimento na cultura em que está inserido e nas relações que estabelece com os seus pares. Por mais que uma criança goste de brincar sozinha, ela aprende aquele ato a partir de observações do e com o outro.
Por vezes, a brincadeira é associada como uma atividade do universo infantil, quando, na verdade, a humanidade constrói sua linguagem por meio de diferentes experiências lúdicas, sendo essas, vinculadas ao prazer, à tensão, à ordem, ao ritmo e ao entusiasmo. Não acredito tanto nessa premissa de que o brincar seja algo específico das infâncias. O que observo é que, o que está em jogo no brincar, é diferente para as crianças, os adolescentes, os adultos e os idosos.
No mundo, temos exemplos de brincadeiras dos públicos mais velhos, como na dimensão da experimentação da sexualidade: Verdade ou Consequência, Eu Nunca, ou Jogo da Garrafa. Ou nos jogos de azar: Pôquer, Truco, ou Pife. Faço um adendo que, as bets não entram nessa categoria, pois, não permitem que os seres humanos se inscrevam nessas ações como sujeitos, mas o colocam em posição de subalternidade e os violenta para que as empresas lucrem a partir do desespero da classe trabalhadora.
Os jogos de tabuleiro, como: Imagem e Ação, Perfil, Academia, RPGs de mesa, dentre outros que, a meu ver, continuam a atingir mais público jovem do que o infantil. Fora a institucionalização de alguns, como Dama e Xadrez, com seus campeonatos mundiais e internacionais, buscando marcar uma certa seriedade, mas que, ao final, são atividades lúdicas em que os mais velhos se permitem vivenciar.
Fico pensando que, para além de proteger as infâncias, a semana mundial do brincar pode atingir as adolescências e as outras etapas da vida que são violentadas e retiradas do seu direito de brincar. É preciso construir mais espaços, acessíveis, para que adolescentes e adultos possam vivenciar esses jogos citados, que inclusive estão muito presentes na cultura mineira, mostrando que sua relevância vai além de apenas tirar o jovem do celular, mas, também valorizam nossa cultura e promovem novas interações com nosso povo. O jogo e a brincadeira são linguagens vitais humanas, por isso, desvalorizá-la, é um projeto colonial