CL – Nº 67 – 21/11/2014

Informativo semanal do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”Ano II – Edição 067 / sexta-feira, 21 de novembro de 2014 

Leitura: modo de usar

 Eliane Marta Teixeira Lopes

Sou uma leitora antiga, embora não tenha sido precoce. Da caixinha em que estava escrito qui-mio-far-ma e sua composição química, leio de tudo. Confesso: jornais menos. Depois que o Jornal do Brasil foi fechado, quase nada. Quando meu filho aos quatro anos me viu com jornais debaixo do braço disse – mulher não lê jornal.  Vai ver que não. Adoro ler bulas e receitas de remédio ou culinárias; manuais de instrução para uso (forno de micro-ondas; computador ou câmara fotográfica) não. Sei errar sozinha.

 Gosto de ler. Mas, se pensarmos que todos os gestos e todos os -poucos- movimentos que estão presentes na hora da leitura, e mais o imobilismo a que ela nos sujeita, que fadiga-nos, faz-nos doer as costas, a nuca, o dorso, os quadris, os olhos, por vezes entorpecem-nos as mãos… então, de onde vem o gosto? haveria prazer no ato de ler? De qual prazer se fala, quando se fala no prazer da leitura? 

 Sou uma leitora antiga. Isto quer dizer que leio há muito tempo, desde quando sobre mim se aplicou a máxima sentença pedagógica, definidora de destinos, “ela aprendeu a ler”. Assim foi sentenciado quando as primeiras palavras que me entraram pelos olhos e me saíram pela boca, quase simultaneamente -há especialistas que sabem o que se passa entre um momento e outro- foram:   Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce. Eu gosto tanto de doce. Vocês gostam de doce? Declamo isso sem me importar se era mesmo assim que estava no cartaz à minha frente e na cartilha às minhas mãos, mesmo assim aprendi a ler e, hoje, até ganho a vida com isso. Só muito tempo depois apelidaram-me Lili.

 Ler é ato que precisa do outro para reconhecer e legitimar sua inauguração. É por isso que na escola pede-se que se mostre que se sabe, pois alguém (a professora, o professor, a mãe, o pai, o padre, o pastor) pode ordenar-me que leia; minha revanche é que jamais saberá se o faço. Se há vigias, permaneço de olhos baixos, movimento, às vezes, o ombro como num muxoxo, passo as páginas, volto à página anterior para confirmar uma ideia… mas não estou lendo. Da leitura, tal como a praticamos hoje – no tempinho em que o sinal está vermelho, no ônibus, no trem, dois minutos na cama antes de desfalecer de cansaço, como companhia durante o almoço ou o café da manhã –, poderia se dizer que é questão de foro íntimo. Uma espécie de clube onde estão associados, em todo mundo, alfabetizados e beletristas. Desavisados e avisados. Desenvoltos e amarrados. O desavisado lê para se deixar surpreender; o avisado prepara-se; o desenvolto toma rapidamente a medida do seu prazer; o amarrado crê sempre ser o leitor modelo. Mas nada disso é público, ninguém precisa saber o que cada um é. Também não é necessário que cada um seja sempre a mesma coisa. Não há fidelidade exigida, não há fidelidade cumprida; tudo se dá na larga praia do desejo. Podemos, nós e cada um, ser, de cada vez, a cada leitura, e, às vezes, ao mesmo tempo, durante a mesma leitura, cada um desses. Encontrando aquela frase ou enredo que sempre ouviu e nunca teve coragem de perguntar  de quem era; procurando saber quem é o autor, indo às Enciclopédias antes, lendo os correlatos, prós e contras; largando o livro, se ele não agradou, logo no início, ou no meio ou perto do fim; sentando-se conforme manda o ortopedista; à distância correta do livro conforme manda o oculista; frequentando as livrarias e não as bibliotecas, conforme manda o alergista; marcando com caneta, conversando com autor; colocando dedicatórias a si mesma (eu faço!); fazendo remissão de páginas e, às releituras (supremo prazer a cada reencontro!) marcando em cores diferentes e escrevendo as datas. Tudo isso pode, e pode também seu inverso. 

 Não contem o fim do livro

Mas, a suprema heresia, mesmo, é ler o final do livro antes de chegada a hora determinada. Para mim, desobediência e insurreição tardias e atrasadas, sempre com gosto renovado e salpicado de culpa. Devo declarar que as razões que levavam quem quer que seja a proibir-me isso eram infundadas. Ao contrário do que diziam, na verdade temiam, (você abandona o livro, o livro perde o interesse) todas as vezes em que, hoje, avidamente, vou ao fim do livro, arranco do autor o final da história, consigo entregar-me a ele (autor) e a ela (leitura) com um prazer infinitamente maior. Sabido o fim, é fruir do prazer que começa desde a letra. Nesse caso, conta menos a história, a trama, e conta mais o convívio. Com o autor, que mesmo conhecido – até pessoalmente – é sempre um suposto autor… com as letras e as palavras e as frases e com a temida e odiada e intrigante gramática, sintaxe, ortografia e tudo mais que desaprendi, mas que corre ao meu lado. Às vezes vou ao final do livro porque a história se tornou pesada. Talvez o autor não saiba ainda como atingir o final, o que fazer com esse ou aquele personagem e vai fazendo rodeios, não para amolar o leitor, mas para ouvir melhor o personagem na trama que vai se urdindo. O romance policial guarda mais a fama de que não se pode contar o final. Ora, e porque não? Não sou eu a assassina… Posso, conservadoramente, ir lendo página por página, contendo o fôlego, errando nas previsões de quem será o culpado, torcendo por um ou outro, mas posso também, irreverentemente, ir ao final e descobrir o culpado (nem sempre o culpado é o assassino) ou o assassino, e voltar ao meio do livro e ir perseguindo o autor e o assassino em suas falhas, em como se deixou pegar, que escolhas foram feitas. Talvez se devesse pedir desculpa aos autores quando se faz isso… mas um deles, autor, declarou a morte do autor e por ela o nascimento do leitor. Ele, Roland Barthes, diz mais ou menos assim, em um texto publicado no livro O Rumor da Língua (que considero uma leitura incontornável): a morte do autor é o nascimento do leitor e se não há um “autor-Deus”, para controlar o significado de determinado trabalho, os horizontes interpretativos estão abertos para o leitor.

 Umberto Eco (ainda falarei mais dele) diz que o texto é uma máquina preguiçosa esperando alguém que lhe confira sentido. Fala mais – é engraçado dizer-se que o autor “fala”, o leitor até pode falar, mas o autor? Ainda mais se estiver morto – : a obra de arte é aberta e é aberta porque não comporta apenas uma interpretação. O que podemos completar com o que apareceu outro dia no meu Face Book como sendo de autoria de Anaïs Nin (a autora de fato existiu e vale a pena conhecê-la, sobretudo quem gosta de literatura erótica): Não vemos as coisas como são; vemos as coisas como somos. O que aponta, já se sabe, para questões como subjetividade, interpretação, representação etc. Nessa esteira se vai longe. 

 Mas como as palavras são sérias, mas também não, podemos brincar com elas – e é muito melhor do que fazer esteira, por exemplo. Se escrevi acima Não contem o fim do livro, Umberto Eco escreveu (com Jean-Claude Carrière):  _não contem com o fim do livro. O título está escrito assim mesmo, underline e minúscula; no original francês parece que não, mas a frase é maior: N’espérez vous débarassez des livres.  Uma espécie de aviso aos apressados e modistas e alarmistas da hora. Alguns devem se lembrar: a televisão vai acabar com o cinema! Não acabou. O CD vai acabar com o vinil! Não acabou – aliás, ao contrário, o vinil vai gozando de muito boa saúde e prestígio. E outras profecias que algumas vezes se realizaram outras não.

 Não contem com o fim do livro, pois. É do que vou escrever, aqui nesta coluna, na próxima vez. Mas também do meu prazer de ler em um Kindle. Em torno de um convite à leitura, há muitos outros convites.

 Belo Horizonte, 16 de novembro de 2014. 

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