Brasil: sociedade violenta, educação dos jovens, mundo à deriva

Alexandre Fernandez Vaz

Há alguns anos, em Cali, Colômbia, fui a um restaurante e na porta deparei-me com um cartaz desconcertante: dizia que era proibida a entrada de pessoas portando armas de fogo. O relaxamento de um momento pós-trabalho deu lugar a um movimento de alerta, fazendo-me perguntar silenciosamente se cada um nas redondezas levava consigo uma pistola. Por sorte, a sensação durou pouco e imediatamente foi substituída pela conversa agradável com os anfitriões. Aliás, não foi aquela a primeira, tampouco seria a última visita ao acolhedor país que tanta satisfação profissional e pessoal me trouxe. 

O desconcerto acompanhava a sensação de pasmo frente às demonstrações ostensivas de um clima e de uma cultura de violência reinantes. Foi em Medellín, há quase duas décadas, que pela primeira vez eu vi motociclistas serem obrigados a vestir um colete sobre a roupa com o número da placa do veículo, identificação que estava igualmente no capacete. Foi lá também, assim como em Bogotá, que vivenciei a obrigatoriedade da revista pessoal por agentes armados na entrada das universidades. A lista de experiências desse tipo é longa e passa ainda por relatos de assassinatos em série de jovens envolvidos com o narcotráfico, assim como pela visita a bairros em que praticamente não havia homens adultos, compulsoriamente recrutados para os conflitos paramilitares. Neles, muitos foram miseravelmente mortos.

Minha sensação de estranheza frente ao cartaz em Cali continha algo de paradoxal ou mesmo de equívoco, e logo me dei conta. Tudo aquilo era, na verdade, familiar. O Brasil não era e hoje tampouco é um lugar em que as coisas se apresentam de forma muito diferente. A nação com fama de acolhedora e pacífica tem uma história adubada pelo sangue, principalmente de gente com condição étnica e de classe bastante delimitada, assim como daqueles que se desviam do moralismo nacional. O peso da violência em nossa formação é enorme e se manifesta, entre outros quadrantes, na sistemática evitação em haver-se com o passado ditatorial – o do período militar, assim como o do Estado Novo – assim como no desprezo pela herança que o colonialismo nos deixou: tráfico de africanos escravizados, em processo perpetuado entre nós, e genocídio indígena perene. 

Foram muitos os crimes contra a pessoa durante o último pleito eleitoral. Sem falar nas ameaças, tentativas e assassinatos consumados, vale lembrar que em um dos debates entre os postulantes à prefeitura de São Paulo foi proibida a entrada com armas de fogo no estúdio de televisão. Que tal interdição precise ser feita dá mostras do estado de coisas em que nos encontramos. A política é o espaço no qual a violência deve ser substituída pela palavra, ainda que não por gritos e uivos, tampouco pelos cortes das redes sociais. De fato, não estamos perto dessa situação. Corresponde a ela, que é simultaneamente letárgica e agressiva, a normalização das atitudes brutais, de resto já consolidada pelas práticas e ódios que nos consomem: racismo, transfobia, homofobia, capacitismo, misoginia, preconceito de classe e daí por diante.

A selvageria antipolítica se conecta à vontade civil de não enfrentar a violência na sociedade, ela que afeta sobretudo os mais vulneráveis. O caso recente de “bala perdida”, que atingiu um menino de quatro anos que brincava em frente de casa em Santos, e a recorrência da morte de jovens no contexto do tráfico de drogas, se somam à peremptória recusa por parte de polícias militares em fazer seus membros usarem câmeras de segurança durante as ações. Todos sabemos o motivo dessa rejeição, tanto quanto as razões para a promoção cada vez maior dos clubes de tiro – um político de estado sulista propõe neste momento, contra uma resolução federal, que eles abram ininterruptamente durante as 24 horas do dia.

Cresci em um ambiente no qual as armas eram peça do cotidiano dos homens. Artefato fálico, o revólver estava lá, ao alcance dos meninos que aprendiam a manuseá-lo sob a supervisão adulta. A masculinidade catastrófica, como a trataram Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira em Quebrando mitos, nos deu régua e compasso e é requisito da violência contemporânea. Olhemos um pouco mais para nós mesmos e para nossa história social. E eduquemos os jovens de nossa época de forma distinta, para um mundo que possa ser melhor do que este que está à deriva.

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