O entulho autoritário e a seletividade da polícia no Brasil

Por Luciano Mendes de Faria Filho

Outro dia, participando de uma banca de doutoramento na área de educação, a candidata, professora de direito, nos disse que, em certos aspectos, se desejássemos e fosse necessário, poderíamos mobilizar a primeira lei imperial brasileira sobre o tema, de 1827, para defender certas posições. Indagada porque, ela simplesmente respondeu: “porque essa lei nunca foi revogada!”.
Lembrei-me disse a propósito do inquérito aberto pela polícia federal, em Minas Gerais, para apurar o envolvimento de Maria Rosália Barbato, de nacionalidade italiana, professora concursada da UFMG, com atividades políticas no Brasil. O inquérito, aberto a partir de uma denúncia anônima apresentada à PF em agosto de 2015, chegou ao conhecimento da professora por meio de documento dirigido à Reitoria da UFMG convocando-a para depor sobre seu envolvimento com partidos políticos e movimentos sindicais.
O inquérito é baseado na Lei 6.815/1980, mais conhecida como Estatuto do Estrangeiro, publicado ainda sob o regime militar. Chama atenção, neste caso, a posição da PF de que a lei existe e, logo, é dever da polícia zelar pelo seu cumprimento ou, como disse o delegado da PF, Luiz Augusto Pessoa Nogueira, diretor da Associação dos Delegados de Polícia Federal em Minas Gerais, segundo o jornal O Tempo: “toda norma legal tem validade e presunção de constitucionalidade, até que o judiciário diga que não”.
Os raciocínios do delegado e da PF são francamente contestados por vários juristas que afirmam que a Constituição de 1988, ao estabelecer deveres e direitos para brasileiros e estrangeiros, não acolheu, da Lei 6.815/1980, a discriminação contra os estrangeiros agora mobilizada pela PF. Mas não deixam de ser reveladores a posição do Delegado e da própria PF no caso: elas demonstram, cabalmente, a permanência do entulho autoritário e da seletividade da polícia no Brasil.
De um lado, o entulho autoritário continua no nosso arcabouço jurídico que, sobretudo em tempos sombrios como o que estamos vivendo, é continuamente mobilizado contra os inimigos do Estado ou da Pátria, ou, simplesmente, contra ativistas em defesa dos direitos sociais, da livre associação e expressão. De outra parte, a entulho autoritário permanece profundamente arraigado em nossa cultura política e jurídica, independentemente, inclusive, da lei.
Todos nós sabemos da seletividade da polícia e dos órgãos de segurança contra certos grupos sociais e étnico-raciais, notadamente os pobres e os negros. Nos tempos atuais, corre-se o risco dessa ação seletiva passar a abranger os militantes dos direitos humanos, sociais, políticos e das minorias, os “vermelhos” como dizem na linguagem cotidiana muitos policiais, no que são endossados por parcela significativa da população. Para esses grupos, muito mais do que para outros, vale o que está na Lei ou, mesmo, o “espírito da Lei”, desde que seja para condená-los ou, numa situação muito pior, mas nem de longe excepcional, para eliminá-los, como o demonstra o altíssimo número de jovens negros e pobres assassinados pela polícia no Brasil.
Felizmente, no caso da professora aqui lembrada, houve grande pressão e mobilização de seus colegas e de várias instituições em solidariedade a ela. Por estes ou por outros motivos, um juiz mineiro suspendeu o inquérito, mas ainda não decidiu sobre o mérito da questão. No entanto, infelizmente, sabemos que o simples fato de o inquérito existir já é uma afronta à Constituição. Do mesmo modo, e também infelizmente, a oportuna ação do juiz não pode não fazer esquecer que no Brasil, a justiça consegue ser tão ou mais seletiva quanto a polícia. E isto é um atentado cotidiano contra a democracia e o Estado de Direito.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *