Vicissitudes dos pós-graduandos (I)

Há alguns anos, João Moreira Salles, em discurso na Academia Brasileira de Ciências, mencionava a pouca presença de cientistas como personagens do cinema e da literatura nacionais. Eles estariam ausentes do rol de referências que povoam nosso imaginário. Entusiasta da ciência, principalmente da Matemática, o documentarista e editor criou recentemente o Instituto Serrapilheira, dedicado ao financiamento de pesquisas que se dediquem a “grandes perguntas”, a conquistas de longo prazo que possam chegar à solidez que só com audácia e criatividade pode ser alcançada. Para tanto, ele e sua esposa dotaram o órgão de um generoso fundo. Trata-se de iniciativa muito bem-vinda.

Uma das exceções à ausência de cientistas como personagens encontra-se no livro de estreia de Carlos Heitor Cony, O ventre, que logo cumprirá sessenta anos. Apenas um dos dois que o autor considera como valorosos em sua extensa produção (o outro é Pilatos), a narrativa confronta em chave existencialista a experiência dos melhores anos, talvez, que o Brasil conseguiu viver no século vinte. Esse contexto é, no entanto, visto pelo seu anverso. Importa as vicissitudes de um menino que veio ao mundo por engano, por causa de um acidente que jamais deixará a suspeita de lado. Suspeita que deixa alguns com culpa, outros com falta, alguém casmurro. O menino desprezado cresce e se torna um adulto sem perspectivas.

Em contraste com a vida banal, mas não isenta de sentido, do protagonista, há o irmão. Não um, mas o. Este outro, que é aluno brilhante e filho querido, é um sofredor, não há dúvidas. Com o tempo, faz carreira de cientista, troca correspondência com o próprio Einstein, segue, sofrendo. O fim dele não é bom.

A recordação do livro de Cony, cuja primeira leitura fiz há duas décadas, me veio quando li o texto da conferência de João Moreira Salles, e, novamente, há algumas semanas, ao me deparar com a notíciasobre o suicídio de um doutorando na Universidade de São Paulo. Cada caso é único e não se trata de avaliar ou julgar o ocorrido, mas de tomá-lo como um móbile que ajude a pensar um pouco sobre a pós-graduação. Se acontece um suicídio, é porque todos nós, de alguma forma, erramos. O caso extremo pode dizer algo sobre os que se encontram na mesma rota, mas que, ainda bem, não chegaram a tal ponto.

As dificuldades não são exclusividade nossas. Mesmo em um país em que a tradição da pós-graduação chega a séculos, como a Alemanha, há problemas no sistema e muitas pessoas desistem antes de concluir a tese. Experimentos fracassam, financiamentos acabam, há que ganhar a vida.

Não é pouca a angústia de muitos pós-graduandos que tenho encontrado nas universidades brasileiras e aqui me refiro principalmente, mas não com exclusividade, aos de Humanidades. As razões são variadas, mas parece haver algo corriqueiro, que é um sentimento de não saber se posicionar. Sobre mestrandos e doutorandos se coloca uma expectativa que nem sempre pode ser cumprida. Alguns chegam à pós-graduação treinados e fazem seus trabalhos corretamente, o que não quer dizer que se tornaram bons pesquisadores, uma vez que frequentemente repetem o já sabido com umas tintas a mais ou a menos. Garantir o óbvio é mais incentivado do que arriscar o novo. Mas há muitos ingressantes com severos problemas na formação inicial e estes, como aliás também os antes citados, precisam de constante orientação.

O caminho da pesquisa não é apenas o da confecção do trabalho final, menos ainda o do cumprimento de créditos. Ele demanda formação ampla, disciplina, estudos propedêuticos, experiência na escrita e na formulação e análise de problemas. Sem muita dedicação dos orientadores, a formação de um mestre ou doutor pouco ou nada avança. Muito da insegurança e da fragilidade dos pós-graduandos é resultado da falta de orientação, de não saberem o que fazer e com isso procrastinar as atividades até que já não seja possível realiza-las. Que é quando se diz, como a confirmar um veredito já desde sempre anunciado, que há pouco tempo para escrever a dissertação ou a tese.

É, no entanto, de um tempo mais qualificado, e nem sempre mais extenso, que precisam mestrandos e doutorandos. Consideremos a questão.

Sul da Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2017.

Foto: chuttersnap via Unsplash

 

Alexandre Fernandez Vaz

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Vicissitudes dos pós-graduandos (I)

Alexandre Fernandez Vaz

Há alguns anos, João Moreira Salles, em discurso na Academia Brasileira de Ciências, mencionava a pouca presença de cientistas como personagens do cinema e da literatura nacionais. Eles estariam ausentes do rol de referências que povoam nosso imaginário. Entusiasta da ciência, principalmente da Matemática, o documentarista e editor criou recentemente o Instituto Serrapilheira, dedicado ao financiamento de pesquisas que se dediquem a “grandes perguntas”, a conquistas de longo prazo que possam chegar à solidez que só com audácia e criatividade pode ser alcançada. Para tanto, ele e sua esposa dotaram o órgão de um generoso fundo. Trata-se de iniciativa muito bem-vinda.

Uma das exceções à ausência de cientistas como personagens encontra-se no livro de estreia de Carlos Heitor Cony, O ventre, que logo cumprirá sessenta anos. Apenas um dos dois que o autor considera como valorosos em sua extensa produção (o outro é Pilatos), a narrativa confronta em chave existencialista a experiência dos melhores anos, talvez, que o Brasil conseguiu viver no século vinte. Esse contexto é, no entanto, visto pelo seu anverso. Importa as vicissitudes de um menino que veio ao mundo por engano, por causa de um acidente que jamais deixará a suspeita de lado. Suspeita que deixa alguns com culpa, outros com falta, alguém casmurro. O menino desprezado cresce e se torna um adulto sem perspectivas.

Em contraste com a vida banal, mas não isenta de sentido, do protagonista, há o irmão. Não um, mas o. Este outro, que é aluno brilhante e filho querido, é um sofredor, não há dúvidas. Com o tempo, faz carreira de cientista, troca correspondência com o próprio Einstein, segue, sofrendo. O fim dele não é bom.

A recordação do livro de Cony, cuja primeira leitura fiz há duas décadas, me veio quando li o texto da conferência de João Moreira Salles, e, novamente, há algumas semanas, ao me deparar com a notícia sobre o suicídio de um doutorando na Universidade de São Paulo. Cada caso é único e não se trata de avaliar ou julgar o ocorrido, mas de tomá-lo como um móbile que ajude a pensar um pouco sobre a pós-graduação. Se acontece um suicídio, é porque todos nós, de alguma forma, erramos. O caso extremo pode dizer algo sobre os que se encontram na mesma rota, mas que, ainda bem, não chegaram a tal ponto.

As dificuldades não são exclusividade nossas. Mesmo em um país em que a tradição da pós-graduação chega a séculos, como a Alemanha, há problemas no sistema e muitas pessoas desistem antes de concluir a tese. Experimentos fracassam, financiamentos acabam, há que ganhar a vida.

Não é pouca a angústia de muitos pós-graduandos que tenho encontrado nas universidades brasileiras e aqui me refiro principalmente, mas não com exclusividade, aos de Humanidades. As razões são variadas, mas parece haver algo corriqueiro, que é um sentimento de não saber se posicionar. Sobre mestrandos e doutorandos se coloca uma expectativa que nem sempre pode ser cumprida. Alguns chegam à pós-graduação treinados e fazem seus trabalhos corretamente, o que não quer dizer que se tornaram bons pesquisadores, uma vez que frequentemente repetem o já sabido com umas tintas a mais ou a menos. Garantir o óbvio é mais incentivado do que arriscar o novo. Mas há muitos ingressantes com severos problemas na formação inicial e estes, como aliás também os antes citados, precisam de constante orientação.

O caminho da pesquisa não é apenas o da confecção do trabalho final, menos ainda o do cumprimento de créditos. Ele demanda formação ampla, disciplina, estudos propedêuticos, experiência na escrita e na formulação e análise de problemas. Sem muita dedicação dos orientadores, a formação de um mestre ou doutor pouco ou nada avança. Muito da insegurança e da fragilidade dos pós-graduandos é resultado da falta de orientação, de não saberem o que fazer e com isso procrastinar as atividades até que já não seja possível realiza-las. Que é quando se diz, como a confirmar um veredito já desde sempre anunciado, que há pouco tempo para escrever a dissertação ou a tese.

É, no entanto, de um tempo mais qualificado, e nem sempre mais extenso, que precisam mestrandos e doutorandos. Consideremos a questão.

Sul da Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2017.

 

Foto: chuttersnap via Unsplash https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php https://zp-pdl.com/apply-for-payday-loan-online.php www.otc-certified-store.com

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