Uma espécie em vias de extinção? O polímata na época na especialização

Para refletir acerca dos polímatas deve-se perceber os problemas atuais em uma perspectiva de longa duração. E, paralelamente ao excesso de informação que nos é apresentado, observamos dificuldades em assimilar e gerir tanto conteúdo. Nessa esteira de entendimento é que se apresenta o questionamento de Peter Burke: os polímatas ou os grandes generalistas do conhecimento podem sobreviver aos cânones da especialização?

Retomemos, portanto, nossa atenção para as chamadas “grandes crises do conhecimento”, ocasionadas em sua primazia pela revolução nos meios de comunicação. A primeira delas mencionada por Peter Burke ocorreu após a invenção dos tipos móveis por Gutemberg na Europa, durante o século XV, e caracterizou-se pela expansão dos impressos entre os séculos XVI e XVII. A segunda, ocorrida no século XIX, está ligada à crescente difusão de livros no Ocidente. E a terceira, chamada de revolução digital, que está em curso na atualidade e vem ocorrendo em escala global devido ao excesso de informações a que estamos submetidos com o advento das novas tecnologias.

Na Idade Média e no contexto do Renascimento ser um polímata não era um problema, haja vista que a variedade de interesses era algo natural naquele tempo. No entanto, no século XIX, as relações com o conhecimento se transformaram e a especialização passou a ser uma prioridade.

Voltando o olhar para o século XVII, Burke destaca o polímata Isaac Newton, que além de renomado físico, era também astrônomo, alquimista, filósofo natural, teólogo e matemático. Destaca ainda a polímata Juana Inés de la Cruz, uma intelectual e freira mexicana que além de ser considerada grande escritora do chamado Século de Ouro, era também poetisa, dramaturga e aficionada por livros. Assim cabe alegar que, diferentemente dos polímatas da atualidade, os daquele contexto,considerados “monstros da erudição”, não viviam uma sobrecarga de informação, mas ao contrário, se deparavam com a fragmentação desta. Com a chegada do século XVIII, o estreitamento de interesses era evidente e o ideal intelectual do período era ser um “Homem das letras”. No entanto, os polímatas resistiam. Durante o XIX, ocorrências como expedições científicas para o novo mundo e a gama diversa de informações que era produzida demandavam cada vez mais a ideia da especialização, bem como o surgimento de disciplinas que dessem conta de alicerçar e principalmente assimilar novos conhecimentos. Termos novos como “spécialité” ou “cientista” ganhavam ressonância.

No decorrer do século XX, o conhecimento nas Universidades se fragmentava e subdividia-se cada vez mais em departamentos, especialidades, e Burke reitera: “Esperava-se que os polímatas desaparecessem. Mas não! Eles ainda se mantém.”

Polímatas sempre inspiram-se em polímatas mais antigos. Eles existem em nosso tempo, embora sejam uma espécie rara. Possuem grande capacidade de concentrar atenção, são curiosos e, sobretudo, possuem capacidades psicológicas que são atemporais, as quais podem ser reprimidas ou aguçadas pela conjuntura social.

Contudo, a fragmentação do conhecimento no século XXI foi ainda mais longe, e seu crescimento passou a ameaçar a própria especialização: “Sabemos mais e mais sobre cada vez menos? Sabemos tudo sobre nada?” indaga nosso historiador. Logo, não sugere-se aqui que as especializações são insatisfatórias, afinal, muito da ciência se deve ao advento das especializações. Entretanto, ela tem um preço obscuro: é a perda da informação total.

Dessa forma os generalistas do conhecimento ou polímatas conseguem lidar com o problema da fragmentação e com a distância óbvia entre as áreas do conhecimento. Pois estes, afirma Burke, são aqueles capazes de observar as conexões inesperadas entre os campos, pois avaliam determinado tipo de conhecimento por meio de um olhar que é treinado muitas vezes para outro gênero do conhecimento.

Peter Burke nos convida a pensar o quão incrível é a sobrevivência dos polímatas às crises do conhecimento e nos leva,sobretudo, a refletir os mecanismos atemporais que os fizeram permanecer e atravessar distintos tempos históricos. E, então, questiona: “São obsolescentes os polímatas? É possível que a era dos avanços digitais produza polímatas para as próximas gerações?”.  Isto posto… o curso da História nos dirá.

Priscilla Verona

Imagem de destaque: O reitor da UFMG Jaime Ramírez e a professora da Fale Juliana Gambogi compuseram a mesa com o historiador Peter Burke. Foto: Lucas Braga/UFMG

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Uma espécie em vias de extinção? O polímata na época na especialização

Priscilla Verona

 

Para refletir acerca dos polímatas deve-se perceber os problemas atuais em uma perspectiva de longa duração. E, paralelamente ao excesso de informação que nos é apresentado, observamos dificuldades em assimilar e gerir tanto conteúdo. Nessa esteira de entendimento é que se apresenta o questionamento de Peter Burke: os polímatas ou os grandes generalistas do conhecimento podem sobreviver aos cânones da especialização?

Retomemos, portanto, nossa atenção para as chamadas “grandes crises do conhecimento”, ocasionadas em sua primazia pela revolução nos meios de comunicação. A primeira delas mencionada por Peter Burke ocorreu após a invenção dos tipos móveis por Gutemberg na Europa, durante o século XV, e caracterizou-se pela expansão dos impressos entre os séculos XVI e XVII. A segunda, ocorrida no século XIX, está ligada à crescente difusão de livros no Ocidente. E a terceira, chamada de revolução digital, que está em curso na atualidade e vem ocorrendo em escala global devido ao excesso de informações a que estamos submetidos com o advento das novas tecnologias.

Na Idade Média e no contexto do Renascimento ser um polímata não era um problema, haja vista que a variedade de interesses era algo natural naquele tempo. No entanto, no século XIX, as relações com o conhecimento se transformaram e a especialização passou a ser uma prioridade.

Voltando o olhar para o século XVII, Burke destaca o polímata Isaac Newton, que além de renomado físico, era também astrônomo, alquimista, filósofo natural, teólogo e matemático. Destaca ainda a polímata Juana Inés de la Cruz, uma intelectual e freira mexicana que além de ser considerada grande escritora do chamado Século de Ouro, era também poetisa, dramaturga e aficionada por livros. Assim cabe alegar que, diferentemente dos polímatas da atualidade, os daquele contexto,considerados “monstros da erudição”, não viviam uma sobrecarga de informação, mas ao contrário, se deparavam com a fragmentação desta. Com a chegada do século XVIII, o estreitamento de interesses era evidente e o ideal intelectual do período era ser um “Homem das letras”. No entanto, os polímatas resistiam. Durante o XIX, ocorrências como expedições científicas para o novo mundo e a gama diversa de informações que era produzida demandavam cada vez mais a ideia da especialização, bem como o surgimento de disciplinas que dessem conta de alicerçar e principalmente assimilar novos conhecimentos. Termos novos como “spécialité” ou “cientista” ganhavam ressonância.

No decorrer do século XX, o conhecimento nas Universidades se fragmentava e subdividia-se cada vez mais em departamentos, especialidades, e Burke reitera: “Esperava-se que os polímatas desaparecessem. Mas não! Eles ainda se mantém.”

Polímatas sempre inspiram-se em polímatas mais antigos. Eles existem em nosso tempo, embora sejam uma espécie rara. Possuem grande capacidade de concentrar atenção, são curiosos e, sobretudo, possuem capacidades psicológicas que são atemporais, as quais podem ser reprimidas ou aguçadas pela conjuntura social.

Contudo, a fragmentação do conhecimento no século XXI foi ainda mais longe, e seu crescimento passou a ameaçar a própria especialização: “Sabemos mais e mais sobre cada vez menos? Sabemos tudo sobre nada?” indaga nosso historiador. Logo, não sugere-se aqui que as especializações são insatisfatórias, afinal, muito da ciência se deve ao advento das especializações. Entretanto, ela tem um preço obscuro: é a perda da informação total.

Dessa forma os generalistas do conhecimento ou polímatas conseguem lidar com o problema da fragmentação e com a distância óbvia entre as áreas do conhecimento. Pois estes, afirma Burke, são aqueles capazes de observar as conexões inesperadas entre os campos, pois avaliam determinado tipo de conhecimento por meio de um olhar que é treinado muitas vezes para outro gênero do conhecimento.

Peter Burke nos convida a pensar o quão incrível é a sobrevivência dos polímatas às crises do conhecimento e nos leva,sobretudo, a refletir os mecanismos atemporais que os fizeram permanecer e atravessar distintos tempos históricos. E, então, questiona: “São obsolescentes os polímatas? É possível que a era dos avanços digitais produza polímatas para as próximas gerações?”.  Isto posto… o curso da História nos dirá.


Imagem de destaque: O reitor da UFMG Jaime Ramírez e a professora da Fale Juliana Gambogi compuseram a mesa com o historiador Peter Burke. Foto: Lucas Braga/UFMG

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