Quem tem medo de Gênero?

“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar”

(Chico Buarque)

 

O caráter polissêmico do termo “gênero” garante, em si, a pluralidade da própria compreensão do termo que longe está de uma definição pronta e acabada. As teorias que tentam compreendê-lo são muitas, cada vez mais especializadas e, sem dúvida, intelectualmente dotadas de conteúdos amplamente discutidos. Mas vimos crescer uma onda, alheia a qualquer debate, despontar na cena pública acompanhada pela mediocridade e pela hipocrisia (nada inédito em nosso contexto atual). Todavia, não podemos perder a dignidade que há no espanto e na estupefação diante de gestos que tentam anular o espaço da liberdade e fazer sucumbir todo projeto de diversidade e bem-comum possível. Gestos capazes de causar agressões públicas a uma filósofa extensamente reconhecida, bem como dispostos a queimarem “a bruxa”, longe de verem qualquer problema em apresentarem-se como autênticos inquisidores.

Os tempos são outros e nos desmonta qualquer possibilidade de retorno, pois a história não é cíclica e, cá entre nós, há muita criatividade para rumos piores entre os que habitam a Terra de Santa Cruz. Caminhamos para destinos desconhecidos, que flertam com autoritarismos de toda ordem, em cujos trilhos todos nós corremos perigo.

Afora um Galileu ainda muito mal compreendido entre muitos, os magistrados da boa e velha “opinião” cada vez mais aumentam seu repertório de ação, e não cessam de hastear a bandeira da moral (seletiva e conivente a seus interesses imediatos) e dos “bons” costumes. Mas, merecem algum mérito: os tais que por aí vagueiam denunciando uma tal “ideologia de gênero” (cujo significado de “ideologia” e de “gênero” manipulam e deturpam) criam o problema, fazem crer que ela existe, acusam sua existência, dizem que os outros o praticam, condenam os mesmos, e voltam para casa  satisfeitos por sua ação redentora. Até parecia piada, até parecia impossível.

Berenice Bento1 resume bem, a situação que nos assola: vivemos um pânico moral em torno da categoria de gênero. E gênero, aqui, é ilustrativo dos que falam em nome dele, sem sequer compreendê-lo, porque não se propõem a discutí-lo. Quanto ao pânico, não se sabe de onde nasce, mas quando logo te ameaça, o ataque grassa como solução, quase imediata. Aí, se veem diante da impossibilidade (por mais que assim insistam) de ocultar o que tem sido demonstrado: hierarquias sociais são sim consubstanciadas por marcadores sociais da diferença (e da desigualdade), dentre os quais, o gênero.

O império da “opinião” segue o baile acreditando desatar “nós” e fazendo tropeçar qualquer compreensão lógica e refletida sobre o que se afirma. É necessário que se diga que os cromossomos definidores das genitálias são mobilizados para justificar espaços e lugares segregacionistas.

Essas pessoas fazem desatar o ressentimento, sentimento da massa, fruto de quem se considera vítima, e faz morrer a ação política porque a estereliza. E, sabemos, com uma vítima não se discute, porque se assume alvo de uma justiça irreparável.

Precisaremos então fazer emergir, tanto quanto possamos,o espaço da liberdade e fazer recordar seus conteúdos, o que há muito tem sido ignorado (e por essa razão, esquecido). A liberdade nasce da condição de dizer não, e é fundada pelo conflito (não pela intolerância). O conflito introduz-se como forma de dar lugar a tensão que produz o debate e, portanto, garante o lugar das diferenças. Religião é da ordem do privado (ainda que compartilhado por amplos grupos), não da ordem da República. E, lamentavelmente, ainda tal afirmativa soa estranha para alguns.

O tempo saiu do seu ritmo e, sabemos, a História é ingovernável. Do medo que tudo arrasta, a resposta é a intolerância, cuja linguagem é a agressão. “Apropriam-se da agressão, assim como do mandato ético, para encontrar uma solução não violenta para exigências raivosas” considera Judith Butler.

Escancaradamente é possível ver como o julgamento passa pelo corpo, como ainda ele causa constrangimento, como ainda incomoda, perturba, faz desabar certezas e confundir conviccções. O corpo, nos termos de Foucault, está diretamente mergulhado num campo político.

Os sentidos com os quais podemos pintar a liberdade devem basear-se na pluralidade como condição mesma de ser sensível às demandas do outro. Voltamos ao básico. Ainda é preciso acordar “nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações”.

“Não confundam esse momento do processo histórico pelo final. Esse não é o final. Ele não pode ser o final. Agora a questão é: (…) nós queremos educar nossas crianças, ou as crianças das outras pessoas, para entender que isso é um problema altamente debatível? Que há diferentes pontos de vista, e que elas precisam considerar a complexidade do mundo culturalmente e religiosamente, historicamente, para entender essa questão? Não significa que eles precisam aceitar um ponto de vista político “Eu sou a favor do gênero”, “eu sou contra o gênero”… Eu não entendo isso, eu não entendo isso como um debate. Essa questão complexa é algo que as pessoas estão vivendo todo dia quando elas se perguntam: que tipo de mulher eu quero ser? Elas presumem que você pode, até certo grau, participar na construção do seu gênero. Que tipo de homem eu quero ser? Quero ser um homem que brutaliza mulheres e mata? (…) seu gênero pode ser remodelado de uma forma ética. Quer dizer que a categoria de homem está sendo refeita por meio do debate público. Isso é bom. Como não poderia ser bom?”,Judith Butler sobre a questão do gênero nas escolas brasileiras.

Afinal, quem tem medo de Gênero?


[1]Doutora em Sociologia (Universitat de Barcelona) e pós-doutorado (CUNY/EUA). Pesquisadora na interface de Sociologia e Antropologia, nos temas: Decolonialidades, estudos queer, direitos humanos e marcadores sociais da diferença. Prêmio Nacional dos Direitos Humanos de 2011.
Obra: A reinvenção do corpo: gênero e sexualidade na experiência transexual (2006).

[1]Palestra proferida no painel sobre “Teologia e Diversidade afetivo-sexual”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Diversidade afetivo-sexual e teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em 16 de novembro de 2017.

2Palestra proferida no painel sobre “Teologia e Diversidade afetivo-sexual”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Diversidade afetivo-sexual e teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em 16 de novembro de 2017.

JoãoVictor da Fonseca Oliveira – Graduando em História da UFMG – joaoprates2009@hotmail.com

Foto de destaque: Rovena Rosa/Agência Brasil

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Quem tem medo de Gênero?

João Victor da Fonseca Oliveira

“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar”

(Chico Buarque)

 

O caráter polissêmico do termo “gênero” garante, em si, a pluralidade da própria compreensão do termo que longe está de uma definição pronta e acabada. As teorias que tentam compreendê-lo são muitas, cada vez mais especializadas e, sem dúvida, intelectualmente dotadas de conteúdos amplamente discutidos. Mas vimos crescer uma onda, alheia a qualquer debate, despontar na cena pública acompanhada pela mediocridade e pela hipocrisia (nada inédito em nosso contexto atual). Todavia, não podemos perder a dignidade que há no espanto e na estupefação diante de gestos que tentam anular o espaço da liberdade e fazer sucumbir todo projeto de diversidade e bem-comum possível. Gestos capazes de causar agressões públicas a uma filósofa extensamente reconhecida, bem como dispostos a queimarem “a bruxa”, longe de verem qualquer problema em apresentarem-se como autênticos inquisidores.

Os tempos são outros e nos desmonta qualquer possibilidade de retorno, pois a história não é cíclica e, cá entre nós, há muita criatividade para rumos piores entre os que habitam a Terra de Santa Cruz. Caminhamos para destinos desconhecidos, que flertam com autoritarismos de toda ordem, em cujos trilhos todos nós corremos perigo.

Afora um Galileu ainda muito mal compreendido entre muitos, os magistrados da boa e velha “opinião” cada vez mais aumentam seu repertório de ação, e não cessam de hastear a bandeira da moral (seletiva e conivente a seus interesses imediatos) e dos “bons” costumes. Mas, merecem algum mérito: os tais que por aí vagueiam denunciando uma tal “ideologia de gênero” (cujo significado de “ideologia” e de “gênero” manipulam e deturpam) criam o problema, fazem crer que ela existe, acusam sua existência, dizem que os outros o praticam, condenam os mesmos, e voltam para casa  satisfeitos por sua ação redentora. Até parecia piada, até parecia impossível.

Berenice Bento1 resume bem, a situação que nos assola: vivemos um pânico moral em torno da categoria de gênero. E gênero, aqui, é ilustrativo dos que falam em nome dele, sem sequer compreendê-lo, porque não se propõem a discutí-lo. Quanto ao pânico, não se sabe de onde nasce, mas quando logo te ameaça, o ataque grassa como solução, quase imediata. Aí, se veem diante da impossibilidade (por mais que assim insistam) de ocultar o que tem sido demonstrado: hierarquias sociais são sim consubstanciadas por marcadores sociais da diferença (e da desigualdade), dentre os quais, o gênero.

O império da “opinião” segue o baile acreditando desatar “nós” e fazendo tropeçar qualquer compreensão lógica e refletida sobre o que se afirma. É necessário que se diga que os cromossomos definidores das genitálias são mobilizados para justificar espaços e lugares segregacionistas.

Essas pessoas fazem desatar o ressentimento, sentimento da massa, fruto de quem se considera vítima, e faz morrer a ação política porque a estereliza. E, sabemos, com uma vítima não se discute, porque se assume alvo de uma justiça irreparável.

Precisaremos então fazer emergir, tanto quanto possamos,o espaço da liberdade e fazer recordar seus conteúdos, o que há muito tem sido ignorado (e por essa razão, esquecido). A liberdade nasce da condição de dizer não, e é fundada pelo conflito (não pela intolerância). O conflito introduz-se como forma de dar lugar a tensão que produz o debate e, portanto, garante o lugar das diferenças. Religião é da ordem do privado (ainda que compartilhado por amplos grupos), não da ordem da República. E, lamentavelmente, ainda tal afirmativa soa estranha para alguns.

O tempo saiu do seu ritmo e, sabemos, a História é ingovernável. Do medo que tudo arrasta, a resposta é a intolerância, cuja linguagem é a agressão. “Apropriam-se da agressão, assim como do mandato ético, para encontrar uma solução não violenta para exigências raivosas” considera Judith Butler.

Escancaradamente é possível ver como o julgamento passa pelo corpo, como ainda ele causa constrangimento, como ainda incomoda, perturba, faz desabar certezas e confundir conviccções. O corpo, nos termos de Foucault, está diretamente mergulhado num campo político.

Os sentidos com os quais podemos pintar a liberdade devem basear-se na pluralidade como condição mesma de ser sensível às demandas do outro. Voltamos ao básico. Ainda é preciso acordar “nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações”.

“Não confundam esse momento do processo histórico pelo final. Esse não é o final. Ele não pode ser o final. Agora a questão é: (…) nós queremos educar nossas crianças, ou as crianças das outras pessoas, para entender que isso é um problema altamente debatível? Que há diferentes pontos de vista, e que elas precisam considerar a complexidade do mundo culturalmente e religiosamente, historicamente, para entender essa questão? Não significa que eles precisam aceitar um ponto de vista político “Eu sou a favor do gênero”, “eu sou contra o gênero”… Eu não entendo isso, eu não entendo isso como um debate. Essa questão complexa é algo que as pessoas estão vivendo todo dia quando elas se perguntam: que tipo de mulher eu quero ser? Elas presumem que você pode, até certo grau, participar na construção do seu gênero. Que tipo de homem eu quero ser? Quero ser um homem que brutaliza mulheres e mata? (…) seu gênero pode ser remodelado de uma forma ética. Quer dizer que a categoria de homem está sendo refeita por meio do debate público. Isso é bom. Como não poderia ser bom?”,Judith Butler sobre a questão do gênero nas escolas brasileiras.

Afinal, quem tem medo de Gênero?


[1]Doutora em Sociologia (Universitat de Barcelona) e pós-doutorado (CUNY/EUA). Pesquisadora na interface de Sociologia e Antropologia, nos temas: Decolonialidades, estudos queer, direitos humanos e marcadores sociais da diferença. Prêmio Nacional dos Direitos Humanos de 2011.
Obra: A reinvenção do corpo: gênero e sexualidade na experiência transexual (2006).

[1]Palestra proferida no painel sobre “Teologia e Diversidade afetivo-sexual”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Diversidade afetivo-sexual e teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em 16 de novembro de 2017.

2Palestra proferida no painel sobre “Teologia e Diversidade afetivo-sexual”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Diversidade afetivo-sexual e teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em 16 de novembro de 2017.

*Graduando em História da UFMG – joaoprates2009@hotmail.com

Foto de destaque: Rovena Rosa/Agência Brasil

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