Engajamento social, vulnerabilidade e comunicação midiática – Café com o Pensar / Julho de 2017

No dia 14 de julho de 2017 o Projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil, juntamente com o Observatório da Comunicação Pública da Ciência, recebeu a Profa. Dra. Ângela Salgueiro Marques, do Departamento de Comunicação Social/FAFICH/UFMG para a realização do encontro “Café com Pensar”.

O tema da conversa foi “Engajamento social, vulnerabilidade e comunicação midiática”. Ângela Marques vem trabalhando com temas ligados ao reconhecimento social de grupos minoritários. Ela destacou inicialmente que as insurgências e resistências são ações políticas e que a visibilidade não é a única que torna o sujeito político de fato. Neste sentido, visibilidade tem a ver com diálogo e alteridade, a partir da obra “Pode o subalterno falar?”, de Gayatri Spivak, teórica indiana que defende a ideia de que visibilidade não é ser visto, mas, sim, ouvido. A partir destas afirmações iniciais, a professora dividiu sua fala em dois momentos distintos, nos quais nos apresentou autores e conceitos que vem mobilizando em suas pesquisas.

  • Dimensão da vulnerabilidade.

Partindo dos textos “Vida precária, vida passível de luto” e “Vulnerability in resistance”, ambos de Judith Butler, Ângela Marques discutiu o termo vulnerabilidade, ideia associado ao de autonomia – o que, por sua vez, garante autoestima e reconhecimento aos sujeitos. A falta de autonomia seria, então, uma primeira dimensão da vulnerabilidade, e, a segunda, a invisibilidade. É como se os vulneráveis não tivessem agência ou lugar de fala; e a destituição da fala desumaniza os sujeitos, tornando-os seres invisíveis. Ser invisível, portanto, não poder falar e não ser ouvido. Em contrapartida, ser ouvido é ser reconhecido. Para Axel Honneth em “Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”, só há visibilidade quando há reconhecimento. Com base nestes conceitos, Ângela Marques vem pesquisando e discutindo formas de enquadramento do sujeito precário em veículos midiáticos, tais como as mulheres do Bolsa Família, seu tema de doutorado. A partir de códigos de percepção do outro, de acordo com Honneth, somos reconhecidos em diferentes esferas, desde o âmbito familiar, comunitário, até as esferas do Estado e do Direito. Portanto,poder falar e ser ouvido são condições de visibilidade.

  • Sofrimento social e sofrimento moral

Na segunda parte da discussão, a professora trouxe como referência a obra de Emmanuel Renaut, “Souffrancessociales: philosophie, psychologieet politique”, em que o autor elenca sintomas da injustiça nas situações vividas, concluindo que a falta de reconhecimento provocaria a autoculpabilização dos sujeitos – as vítimas de humilhação e opressão pensam merecer tal condição. A ação em relação ao sofrimento social, afirma Marques, seria o reconhecimento de que fora humilhado, o que não é simples. A professora destacou o papel da escrita neste processo, visto que escrever, elaborando a dor como/enquanto ato de nomear as coisas, desencadearia nos oprimidos um processo de libertação. Ela citou uma exposição ocorrida na França em 2007 chamada “Romprelesilence: memoires de chomeurs et precairesen Isere”, em que, por meio da escrita, trabalhadores desempregados e precários podiam expressar seus sentimentos de humilhação social diante de sua condição.

Outro pensador francês citado por Marques, Didier Fassin (“At the Heart of the State: the moral world of institutions”), fala sobre uma“economia moral dos afetos” no mundo das instituições, que acaba por camuflar o que realmente é o Estado: as pessoas e seus códigos. A economia moral dos afetos poderia ser, por exemplo, bombons entregues nas mesas dos funcionários de uma empresa, com um bilhete: “obrigada por ser nosso colaborador”, camuflando, assim, as humilhações sofridas no ambiente de trabalho. As instituições de variadas formas intentam apagar os danos e humilhações provocadas no dia a dia.Nessa perspectiva, o autor propõe pensar no Estado não como o “Leviatã”, mas como as próprias pessoas, que na medida em que são perpassadas por códigos, passam também a responder por meio eles. No entanto, salientou a professora, cabe observar que existe uma diferença entre identidade social (opressão, conceito de “polícia”) e identidade política (a identidade que nós nos damos). De Jacques Rancière, no livro “O espectador emancipado”, a professora traz estas ideias e a de construção do sujeito como interlocutor. Esta última nos ajuda a pensar no lugar de fala e como esse lugar se constrói na mídia, como, por exemplo, o foco no rosto no fotojornalismo. A professora discutiu tais questões em sua tese de doutorado quando analisou como mulheres beneficiárias do programa Bolsa Família foram sendo retratadas em veículos da grande mídia em um período de dez anos do programa. Lévinas, uma de suas referências, contribui com a discussão ao refletir sobre o apelo ético do rosto, e não apenas da face, pois, para ele, o “rosto” vai além da face, é o mostra-se ao mundo, por isso um apelo ético do sofrimento visível que nos convoca para algo, agindo como um clamor – desde os pés à paisagem, o rosto, de alguma forma, nos interpela e diz: “não me deixe morrer”. Marques citou também Georges Didi-Hubermanque, em ensaio sobre Auschwitz, intitulado Cascas, defendeu a ideia de que o rosto é o clamor ético do sofrimento. Os dois autores,Lévinas e Didi-Huberman, constituem a matriz teórica das pesquisas desta professora. Contribuindo com este debate ela trouxe ainda o livro de Angie Biond sobre fotografia de guerra,“Corpo sofredor: figuração e experiência no fotojornalismo”. O rosto – pés, mãos, expressão facial, paisagem, local de trabalho – assim, comunica. No entanto, para que o outro possa ser ouvido, é preciso que ele possa responder. Sobre esta questão, Ângela sugeriu a leitura do livro “À escuta”, de Jean-Luc Nancy.

Outro conceito mobilizado pela professora foi o de alteridade vulnerável: pessoas que precisam de outro para falar em seu nome, o que, segundo ela, é praxe na escrita jornalística, no entanto, bastante perigoso para nossas pesquisas. Precisamos estar atentos para não reproduzir na pesquisa acadêmica o discurso da escrita jornalística, em que não há lugar de fala, alertou Marques. Para constituir um lugar de escuta em nossas pesquisas é importante exercitar a hospitalidade no discurso e na interlocução (nos gestos performáticos: acenar com a cabeça etc.). Enunciado e enunciação, termos emprestados de Bakhtin, são utilizados por Ângela para mostrar que a cena da enunciação é tão importante quanto o próprio conteúdo da fala, pois se compõe pelo gesto da fala, o ato e a cena. Neste sentido, acolhimento e alteridade são dimensões necessárias à pesquisa. Textos acadêmicos, de várias formas, matam a interlocução quando não compreendem essas dimensões. É preciso ter cuidado, pois representações são sempre parciais e incompletas, visto que o signo ocupa o lugar de alguém.

Ângela chamou a atenção para uma questão de metodologia: é importante, para dar esse lugar de fala, que se apresente e se articule os sujeitos da pesquisa desde o início do texto, seja em uma dissertação ou tese. Tendemos a privilegiar o referencial teórico em nossas pesquisas utilizando as falas dos sujeitos, muitas vezes, apenas como mera ilustração da teoria, o que acaba por “matar” ou apagar os sujeitos, destituindo-lhes o lugar de fala. A professora concluiu sua participação afirmando que é fundamental pensar as interfaces teóricas, sem absolutizar as referências, tendo sempre em vista que nenhuma teoria dará conta de nossas perguntas. Esse, portanto, é um desafio perene que se constitui no ato da própria pesquisa, reclamando-nos novos olhares e uma nova escrita, para que o esquecimento não deixe às margens diversos sujeitos já vulnerabilizados de tantas outras formas. Para tanto, é preciso realizar um trabalho à altura de nossos sujeitos.

O Café com Pensar é uma atividade mensal com o objetivo de reunir pesquisadores e articuladores do Projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil para um bate papo sobre temas que intersecionam as diferentes ações do projeto. Dessa vez, teve como propósito discutir os sujeitos e a dimensão do espaço público, no que tange às mídias e outras formas de comunicação.

Gabriela Albanás Couto – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC.

João Victor da Fonseca Oliveira – Graduando em História (FAFICH/UFMG), bolsista da Faculdade de Educação da UFMG.

REFERÊNCIAS:

BIOND, A.Corpo sofredor. Figuração e experiência no fotojornalismo. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG, 2016.

BUTLER, J.; GAMBETTI, Z.; SABSAY, L. Vulnerability in resistance. Duke University Press, 2016.

______________Vida precária, vida passível de luto. In: Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

DIDI-HUBERMAN. Cascas. Disponível em <https://pt.scribd.com/doc/296291136/Cascas-Didi-Huberman>. Acesso: 17 setembro 2017.

FASSIN, D. (et al). At theheartoftheState. The moral world of instutitions. Pluto Press, 2015.

NANCY, J. À escuta. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2014.

RANCIÈRE, J. O expectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

RENAUT, E.  Souffrancessociales: philosophie, psychologie et politique. Paris: La découverte, 2008.

SPIVAK, G.   Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

 

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