Bar do capeta – parte I 

 

                                                                                                        Ivane Laurete Perotti

O Arrudas passava baixo. A céu aberto. Espiando o movimento cadenciado dos moleques sobre a pinguela de tábuas. Podres. A ponto de ceder ao peso dos mais ousados. Mas não era a ousadia das crianças que bamboleava a madeira gasta. Coberta por cicatrizes e vozes. Eram os clientes do Capeta.

Localizado na esquina mais movimentada do bairro, o bar abria-se para aquelas necessidades que não devem ser reveladas. Não era uma gentileza. Sobrevivência. Do corpo. Da alma. Do porão das tristezas camufladas. Algo como a terapêutica dos sentidos.

Prescindia de propaganda. Tradição corria de boca em boca. Copo em copo. Fumaça em fumaça. O humor baseava-se na contingência: mais ou menos ferrados. Bem-ferrados. A relação da oferta e da procura era pessoal. Todos sabiam. Ninguém denunciava. Danificados pela vida , os clientes compareciam ao do Capeta em busca do insustentável. 

Não contavam histórias. Não mentiam. O pedido era uma ordem. Simples. Direta. Sem julgamentos. Um vaivém de cadeiras silenciosas cuja linguagem compartilhava-se em silêncio. Tristeza não se reparte. Exposta, perde a função. Algo contrário ao que se faz hoje. Excessos da civilidade.

Os ciberespaços estavam longe de 1950. À época, apreciava-se a “fossa”.  Sofrência nua, sem backing vocal .  Os buracos n’ alma eram quase os mesmos. Divergiam em tipologias – criadas, claro! –, pelo aumento das mazelas. E das ofertas de corte. Fugas. Divergências. Caminhos fáceis permanecem em alta. Mercados paralelos. Subterrâneos.

Aqueles que caíam das estrelas, pagavam pelo caminho de volta. Hoje, o mapa se desenrola em qualquer canto. Fumam-se verdades inabaláveis. Injetam-se fakes em qualquer veia. Isso quando o sintético não entra na parada. Ou, entra também. Enfim, o Bar do Capeta era um espaço do boêmio e do maldito. Mal-dito. Dizia-se mal do lugar. Mas não se deixava de comparecer. Inevitável.

Nas carestias da vida e dos tempos, a fila aumentava. Com elegância. Etiqueta etílica. Diambas. Patavinas filosóficas marinadas sob a corrente do Arrudas. Minguadas, às vezes. Diminuídas, ocasionalmente. Perigosas, com certeza. 

Para a criançada, um rio. Córrego que guardava segredos e arrastava gentes. Pessoas desavisadas. Da chuva. Do endereço. Do Capeta. Peculiaridade urbana que não escapava aos forasteiros. Guias há. Sempre. Por vontade ou deleite. Necessidades da alma alcoviteira. “Navegar é preciso.” : entre o general romano e Pessoa, fico com o último. Alteridade não se paga. Marujos, sim.

Miudava-se a tarde. Antes preguiçosa, agora lambia velhas feridas e limpava a língua no dorso turvo das nuvens. O Arrudas pressentia. Arrepiava-se.  Quase crespo sob as pedras do leito frio. Não se envolveu no acontecido. O acontecimento lhe tomou responsabilidade. Há quem procura o rio para se banhar. Outros, para afogar as mágoas. A maioria procura coragem. E a encontram na boca do copo.  Por tempo curto.  Enquanto, à espreita, ficam a mágoa e o rio.

O Arrudas não amedrontava os incautos. Era o que se contava em dia seco.

(…continua!)

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