Nilton Ferreira Bittencourt Junior
O Amapá é um Estado brasileiro peculiar. Uma área de aproximadamente 150 mil km2 e apenas 16 municípios. 70% do Estado é considerada reserva de preservação natural onde vivem nove etnias indígenas. A indústria é praticamente inexistente e a economia ainda é marcada por um extrativismo primário (madeira; açaí; peixe; ouro) e pelo comércio. Há um certo isolamento pois só se chega por barco ou avião. Para mim é como se a modernidade aqui estancou junto ao Laudo Suíço, dando ganho de causa ao Brasil da questão do Contestado Franco-Brasileiro em 01 de dezembro de 1900. Neste laudo, hoje marcante para o Estado Amapaense, foi declarada a divisa norte do Estado, na época ainda parte do Grão-Pará, que era disputado entre Brasil e França. Os Franceses alegavam que a fronteira era o rio Araguari; já os Brasileiros lutavam pela demarcação da fronteira mais ao norte, no rio Oiapoque (Rio Vicente Pinzón na época).
Esta minha “hipótese” de uma estagnação no tempo deve-se a constatação (ainda que incipiente) de uma sociedade profundamente marcada pela conservação, pela manutenção de certos hábitos que lembram esta época. Essa constatação é também em grande maioria referente à região norte do Amapá, especificamente no município do Oiapoque onde residi como docente por um ano.
Por outro lado está estrutura pode ser encarada por uma resistência ao moderno, nos aspectos escolar da reprodução cultural e do capitalismo de consumo, onde a vida nos engole e nos transforma em números.
É comum no município de Oiapoque-AP, onde recentemente foi criado um Campus da Universidade Federal do Amapá, vermos pessoas negociando com pepitas de ouro (negociando no sentido de pagar com ouro, hotel, alimentação e até as cachaças do buteco). É comum você ver pessoas com pepitas ou então escudos de times de futebol cunhados com 10, 20 gramas de ouro presas a correntes no pescoço. A cidade é movimentada pelo ouro. A maioria esmagadora de sua elite é do garimpo deste metal. Do prefeito (um mineiro das Minas Gerais), passando pelos donos de comércios, hotéis, etc. A população em sua maioria tem seu sustento no trabalho assalariado nestes comércios e serviços e no extrativismo de frutos conforme a época de produção (Açaí; bacaba; Cupuaçú; pupunha) e peixe. Isso se repete no Estado em geral.
Na Capital Macapá, a questão da formação de um parque industrial enfrenta dificuldades enormes. Começando pela questão de logística (tudo chega por barco ou avião) até a questão da formação de mão de obra. Tudo gira em torno do comércio e do Estado.
Acredito o que mais marca esta fixação tempo/cultural se resume a uma frase muito escutada por “estrangeiros” de outros estados brasileiros. A frase é “AQUI É ASSIM!”
O primeiro impacto que eu senti quando cheguei no Amapá foi o de ser acusado de ‘apropriação indébita’ ao ser constado pelos amapaenses que eu havia passado em um concurso lá. Logo vinha o “você veio roubar nossas vagas”. Isso não só na Universidade, mas no hotel, comércio, nas ruas e praças etc. É uma expressão que pode indicar a não compreensão de como a modernidade atual funciona. Funcionários públicos sempre os ‘de fora’ roubando as vagas dos nativos.
Mas pode também indicar uma resistência de como a modernidade foi apresentada no início do século XX. Um discurso que teima em manter-se estagnado no fisiologismo de cargos governamentais, onde a meritocracia concurseira não passa de um jogo de cartas marcadas. Até argumentei no sentido de demonstrar que os concursos são abertos, que não pode haver reservas de vagas, que há competências envolvidas, enfim, todo aquele discurso que os sulistas brasileiros sabem muito bem. E sempre havia a contraposição denunciando um estado de tutelamento onde os aspectos/instrumentos culturais deles não servem nestas competências concurseiras. E neste contra argumento eu buscava esclarecer mais sobre os porquês desta situação, mas sempre se chegava na frase AQUI É ASSIM! E nela acabava a possibilidade de qualquer argumento. A memória dos fatos históricos gritavam que eles estavam certos. Passados alguns meses eu já respondia: “Vim roubar suas vagas, mas para ajuda-los a ocupa-las”. Foi a forma de minimizar o impacto de ser tratado como colonizador do século XXI, e buscar um vínculo educacional. Vale lembrar que o vínculo afetivo já existe. Meio como um filho adolescente com um Édipo mal resolvido, olhando para o pai.
Estabelecido este vínculo, os argumentos vão se fazendo e as opiniões vão se desvelando, revelando um histórico de experiências que justificam este pensamento. Arriscaria dizer que é um Brasil, nos interesses governamentais de hoje, só que escancarado. As leis não valem e sim os arranjos. No Amapá há a sensação de que “para os amigos tudo, para o inimigos o Rio Amazonas é a serventia da casa”. É o discurso oculto da frase: “Aqui é assim!”. Aí acabou a conversa. É o último argumento nativo e que marca essa resistência e a manutenção de uma estrutura, uma resistência à mudança de comportamento. Arriscaria uma resistência a massificação.
Penso que talvez a questão esteja não nos amapaenses e sim nos migrantes. O Amapá é uma babilônia cultural. Encontra-se brasileiros de todos os cantos, ao ponto de quando se encontra um amapaense de ‘pais e avós’ há um estranhamento. Há nos migrantes uma espécie de adaptação à um lugar menos amarrado nas leis nacionais, onde os arranjos não são de favorecimento de grupo, mas de sobrevivência no ambiente hostil. Uma espécie de lei comum, não escrita, onde prevalece a ordem instaurada nos costumes. E Índio não é amapaense e sim amazonense, no sentido da região de floresta, não há divisões étnicas nas fronteiras. Isso é moderno.
Uma possível conclusão neste primeiro momento que em um Estado onde a população nativa é ainda marcada pela cultura mantida por etnias indígenas, muitas delas ainda com aspectos culturais preservados, inclusive em sua língua original, nada mais expressivo de uma resistência que a manutenção de um sistema legal que regula a sociedade na forma oral. É uma forma de preservar o pouco de hegemonia local sobre a tutela cultural massificante que destrói a diversidade cultural em nome da Ordem e do Progresso. Destrói toda uma rede de possibilidades de produção de conhecimento.