A Universidade e seus perigos (sobre livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza) – Alexandre Fernandez Vaz

A Universidade e seus perigos (sobre livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza)

Alexandre Fernandez Vaz

“(…) seu ponto de partida deveria ser o pensamento, a razão, e não o focinho”, conjetura o Professor Vicente, aposentado por invalidez da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atuava no Departamento de Letras. O alvo da elucubração é Espinosa, cujo nome de filósofo não o impede de ser o Delegado Titular da Primeira Delegacia de Polícia, em Copacabana, Rio de Janeiro. Esta cidade é o cenário de todos os livros policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza, e mais uma vez é aludida no título de um de seus romances, o recém lançado Um lugar perigoso (Companhia das Letras).

Espinosa é personagem contumaz de Garcia-Roza, desde O silêncio da chuva, o primeiro de seus trabalhos ficcionais, publicado há mais de quinze anos. O delegado está fora de apenas um deles e tampouco comparece às várias obras de Teoria Psicanalítica que o autor escreveu, e que recebem contínua republicação, antes de aposentar-se da mesma UFRJ. Por outro lado, os motivos psicanalíticos abundam nos livros policiais, ganhando enorme relevo em Um lugar perigoso. Na trama urdida no estilo dos melhores romances policiais, mas com dicção própria, destaca-se a construção dos personagens e do cenário, uns poucos quarteirões de Copacabana e, em seu interior, o pequeno bairro Peixoto. Garcia-Roza reapresenta Espinosa, sua interessante namorada e os auxiliares da delegacia, agregando a eles Anita e uma mulher talvez imaginária, a professora e antiga colega de UFRJ, Paula (Maria Paula? Ana Paula?). No epicentro da constelação está Vicente. A ocasional perda de consciência e a subtração das memórias recente e retrógrada são sintomas da síndrome de Korsakov que o acomete. Sua rotina é antes rígida que monótona, com pouquíssimas saídas do pequeno apartamento em que vive e onde reforça os vencimentos da jubilação precoce com traduções do inglês e do francês. Esse cotidiano ganha conteúdos terríveis com delírios e fragmentos de memória completados pelos cacos ficcionais que vai reunindo, como e quando pode, para tentar atribuir algum sentido ao que houvera passado.

A máquina de esquecimento do atormentado professor não para de girar a roda da ficção, tudo se acelerando, de maneira nunca linear, pela imagem alucinatória de um corpo feminino fragmentado, cujo rosto geralmente não aparece, mas que ganha forma eventual nas mulheres com que Vicente se relaciona – ou imagina relacionar-se. Tudo aliás, começa com uma lacuna mnemônica, uma lista antiga com o nome de dez moças que encontra em seus guardados, mas sobre a qual não tem a menor ideia a que se refere. Supõe, sem qualquer fundamento racional, que poderia ser uma relação de mulheres por ele assassinadas.

Tudo fica mais complexo com a entrada em cena de Anita, jovem e linda engenheira, que da janela do apartamento da avó, onde se hospeda desde que chegou de Florianópolis para estagiar como trainee em uma multinacional – na Universidade Federal de Santa Catarina está um dos melhores e mais tradicionais centros de pesquisa e ensino tecnológicos no país. Predadora, perscruta o quotidiano de Vicente, especulando se ele seria um escritor (porque o vê sempre ao computador) e preenchendo, com sua imaginação, os vazios que a realidade lhe oferece. O voyeurismo é uma velha e sedutora ação, frequente no cinema e na literatura. A fascinação de Anita só se vê aumentar, chegando ao limite quando adquire um binóculo do Wehrmacht, antigo exército regular alemão, usado na Segunda Guerra Mundial. Mas o que ela alcança assistir com tal prolongamento do olhar que esquadrinha? Um crime, como em Hitchcock? Ou é a fantasia a operar, como em Cortázar e Antonioni? O encontro desses dois personagens universitários – o professor interrompido pela falta de memória, a profissional recém graduada – com seus exercícios imaginativos tanto desejantes quanto desesperados, promete ser intenso.

Se o recurso do Delegado Espinosa deve ser a razão e não o focinho, como concluíra Vicente, é porque é isso que se espera de um professor universitário, que Espinosa não é. Mas, por outro lado, não é o trabalho de desvendar um crime semelhante ao da pesquisa histórica, como ensina Carlo Ginzburg? Aliás, a fechar a trinca das novelas policiais e dos crimes de falsificação de obras de arte, está exatamente a Psicanálise, desenhando a constelação que formará o paradigma indiciário. Os indícios, no entanto, só servirão de algo se a memória puder ser escavada desativando o esquecimento, o olhar continuar afiado e a fantasia exercer seu papel de composição no pensamento.

Garcia-Roza não é o único escritor que escreveu ficcionalmente sobre a experiência de ser ou ter sido professor universitário. Em sua companhia estão, entre tantos, os argentinos Martín Kohan e Ricardo Piglia, assim como o brasileiro Cristóvão Tezza, todos com recentes e notáveis livros que se relacionam com o tema. Um lugar perigoso, no entanto, coloca a memória, o desejo, as vicissitudes de um fracasso, no núcleo estruturante da subjetividade de um professor universitário, um pouco como faz Philip Roth em A marca humana. Em Vicente não há charme ou ironia sobre si, mas apenas angustiante incerteza sobre o passado, além de um presentismo perverso e quase insuportável que, inevitavelmente frustrante, contrasta com a narrativa de um tão alegre quanto perigoso Rio de Janeiro – ou melhor, de sua porção que vai de Copacabana até a Praia Vermelha, onde a UFRJ ocupa um complexo em que outrora estava o Instituto Psiquiátrico do Império.

Lugares perigosos esses do Rio de Janeiro, a começar pela Universidade, não apenas aquela da estrutura arquitetônica que abriga nossos devaneios, mas a que levam junto com eles Anita e Vicente, o professor que já não serve, uma vez vítima da fragmentação radical de si mesmo, cindido de sua memória. Incapaz de evocar lembranças que lhe dariam alguma ilusão de unidade, Vicente não podia mesmo ser suportado pela Universidade, talvez porque o que mais assuste seja o que Freud chamou de Unheimlich, aquilo que vemos como muito distante e incômodo, mas que, de fato, está em nós. Como a imagem que o professor supõe ser de Fabiana, o primeiro nome da lista de mulheres sobre as quais nada lembra, “íntima e ao mesmo tempo estranha e desconhecida”. Como a Universidade.

Medellín, Colômbia, novembro de 2014.

 

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