A sociedade dos invisíveis

Valter Machado da Fonseca

Você já parou para refletir sobre as coisas “invisíveis”? Sobre os objetos que não têm nenhuma importância? Em quase todas as residências sempre tem aquele objeto que não acrescenta nem diminui o aspecto do ambiente interno da moradia. Pode ser um par de sapatos, uma roupa velha, uma peça de porcelana ou mesmo um bibelô barato. Pois bem! Assim também é na nossa sociedade.

Quantas vezes você já parou para perguntar o nome da mulher ou do homem que varre a sua rua? Quantas vezes você já os cumprimentou? Quantas vezes você perguntou o nome do ascensorista de seu prédio ou do jardineiro de seu condomínio?  E aquele mendigo que sempre está na esquina? Aquela criança ou aquela mulher que dorme debaixo da marquise? E aquele catador de lixo? É chique a gente nominar seu ofício: “enchemos a boca” para dizer que ele trabalha com os “recicláveis”, ele cuida do nosso meio ambiente. Mas, na verdade, será que alguma vez já nos preocupamos em saber como é a vida dessas pessoas? O que elas pensam do mundo, da vida? Será que podemos considerar trabalho a atividade das pessoas que sobrevivem dos restos do que consumimos? Será que podemos considerar digno o trabalho das pessoas que sobrevivem do lixo, que reviram “os restos” das famílias abastadas em busca de alimentos para matar sua fome? Qual o projeto, qual a perspectiva de vida das pessoas que, durante 365 dias por ano, passam 24 horas sem saber se estará vivo no dia seguinte?

Caro (a) leitor (a)! Estas indagações mexem com nossa cabeça. Fazem-nos perguntar qual projeto de vida será capaz de resgatar a nossa hombridade, os nossos valores humanos? Como reconstruir os valores que podem reedificar a essência da existência humana? Quais projetos de homem e de natureza podem justificar a existência humana neste planeta?  

Há alguns anos (não me lembro bem quantos) um animal (um touro) premiadíssimo na ExpoZebu (Exposição Nacional de gado Zebu) em Uberaba (MG), engasgou com um pequeno fragmento de osso que estava na ração. Lembro-me que havia, aproximadamente, 12 veterinários em volta do animal. Aquela cena me chocou. Não que o animal não merecesse os cuidados, mas seria necessária uma dúzia de médicos para cuidar de um simples animal? Aí me veio à mente os milhares de pessoas que enfrentam, cotidianamente, as filas do SUS pelo país afora, desesperados à espera não de uma dúzia, mas de apenas um médico para consultá-los. Veio-me à mente as centenas de pessoas que morrem nessas filas por falta de profissionais. Aí eu me pergunto; por que aquele boi precisa de doze profissionais? Por que ele vale mais que uma vida humana?

Prezado (a) leitor (a), o fato é que este modelo de sociedade coisifica o homem e a natureza. Atomiza as pessoas como partículas insignificantes. O homem nesta sociedade não passa de um objeto, descartável, cuja única função é vender sua força de trabalho em troca do florescimento da mais valia: fio condutor e ponto nevrálgico do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista contemporânea. O homem e a natureza são, sistematicamente, transformados em mercadoria a serviço do lucro. Os doze veterinários em volta do boi são o símbolo que expressa a centralidade da preocupação com o lucro, acima de qualquer coisa. O que estava em jogo naquela cena não era a preocupação com a bela aparência do animal, mas, sobretudo, o desespero, o medo de perder o lucro que aquele animal poderia proporcionar com a venda dos caríssimos frascos de sêmen. E não proporcionou, pois ele morreu. 

Assim, a ética (ou a falta dela) nesta sociedade substitui os valores humanos pela mais-valia, pela ganância inesgotável do enriquecimento a qualquer preço. É por isso que existem seres humanos que vivem na penumbra, à margem da vida e da sociedade. É por isso que existe a sociedade dos “invisíveis”, dos humanos “descartáveis”. Pois bem, caros (as) leitores (as), é preciso que comecemos a pensar em como superar estas contradições, pois corremos o sério risco de, em um tempo futuro e não tão distante, assistirmos ao retrocesso à idade das cavernas ou ao avanço aos tempos da barbárie (que já mostra suas evidências), onde o homem poderá tornar-se predador direto de sua própria espécie, autofágico em toda a extensão da palavra.


Imagem de destaque: Milton Jung

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