A luta de classe tem corpo

Pedro Amaral

Vivemos uma crise ética e estética. Acredito que todos/as nós, professores/as das escolas, independentemente de nossos perfis ou dos componentes curriculares que ensinamos, nos deparamos com impasses, reflexões e contradições semelhantes em nossas aulas, especialmente diante daquilo que costumamos nomear como agitação, indisciplina, falta de atenção ou dificuldades de aprendizagem. Muitas vezes, como forma de correção, aplicamos sanções que atingem justamente os momentos vinculados aos saberes da corporeidade — como as aulas de Educação Física, Artes ou o recreio —, tempos e espaços tradicionalmente associados ao prazer, ainda que, por vezes, tratados de forma estereotipada.

Trata-se justamente de disciplinas que poderiam favorecer uma compreensão estética da vida em sociedade. Essa prática revela não apenas a hierarquização dos saberes, mas também uma resistência às formas de conhecimento que valorizam a corporeidade, a sensibilidade, a imaginação e outras maneiras de compreender o mundo. Não se vê retirando uma aula de Português ou Matemática como forma de punição, o que evidencia como a lógica disciplinar não apenas persiste, mas reforça a desvalorização de outras linguagens — muitas vezes estimulando ainda mais a indisciplina que se desejaria conter.

Não proponho, neste texto, apontar qual seria a melhor ou a pior conduta, pois, reconheço que a cultura escolar, inserida em um mundo globalizado, colonial e capitalista, se constrói dessa forma há muito tempo. O que pretendo, mais do que culpabilizar este ou aquele agente, ou instituição educacional, é refletir sobre as escolhas que fazemos por essas sanções, que, embora pareçam resolver esses impasses, me parecem ser fruto de questões relacionais profundas.

A escola se constrói a partir de uma hegemonia histórica de saberes, especialmente marcada pela tradição ocidental positivista. Nos anos iniciais do ensino fundamental, realidade em que atuo, basta observar: quais saberes costumam ser considerados mais importantes — Português, Matemática, Geografia, História, Ciências —, e quais permanecem como secundários ou opcionais — Artes e Educação Física.

Neste sentido, o currículo parece carregar uma estrutura que organiza as disciplinas em função das avaliações externas e da instrumentalização da codificação e decodificação da língua escrita e do raciocínio lógico matemático, alimentando a corrida para definir qual escola é a melhor ou a pior. No entanto, existe um elemento fundamental para mobilizar o sujeito a aprender: o corpo. Um corpo que pulsa, deseja, requer movimento, prazer, libido e vitalidade.

“Não fez para casa? Fica sem recreio.”
“Termina de fazer a prova na aula de Educação Física.”
“Excursão? Com esses meninos agitados desse jeito? Não dá.”
“Eles não merecem nada disso.”

Frases como essas revelam uma lógica meritocrática em que o corpo precisa merecer o acesso às experiências. Retomo aqui que não busco ser ingênuo em minha reflexão: também reproduzo muitos desses discursos, especialmente em situações em que a gerência da sala de aula se torna difícil. Mas, a troco de quê?

Em meio à greve, nós professores da rede pública nos mobilizamos em um movimento de greve contra as estratégias privatistas que usurpam o dinheiro público e desvalorizam a carreira docente. Contudo, para essa luta gerar mobilizações, ela precisa do corpo – singular e coletivo. Corpos diferentes, mas que se identificam em lutas coletivas. Contudo, quando não há espaço em nossa formação para poder expressar nossos desejos e angústias sobre o mundo, vamos lutar pelo que?

Nesse contexto, será que legitimar os saberes que envolvem a corporeidade, incorporando-os em todas as áreas do currículo, poderia ser uma estratégia para a construção de uma luta emancipatória? E, ao reconhecermos nossas subjetividades no campo educacional, não poderíamos fortalecer esse corpo coletivo, permitindo que ele ocupe seu espaço legítimo na história, na cultura e na política, como direito fundamental?

A luta segue, e graças à mobilização sindical e à resistência dos/as professores/as, continuamos a defender o direito a uma educação pública de qualidade. Contudo, é preciso que as tensões do cotidiano escolar também entrem em pauta, inclusive em sua dimensão pedagógica. Sem problematizar o lugar do corpo na educação, corremos o risco de que a letargia que atravessa estudantes e docentes se perpetue, enfraquecendo a capacidade de mobilização necessária para sustentar a luta.

Acredito que precisamos pensar a escola como um espaço de convivência relacional de saberes, em movimento, de corpos diversos. Para além de se inserir nos códigos atrelados à linguagem escrita e ao raciocínio lógico-matemático, que é imprescindível, deve ser também um lugar de acesso e construção de múltiplas linguagens. Portanto, talvez, parte de nossa luta também seja denunciar as horas extensas em que nossos estudantes permanecem nas carteiras, os tradicionalismos e as cobranças impostas sobre o trabalho docente, para que possamos construir caminhos nos quais os sujeitos históricos, culturais, políticos e corporais possam compartilhar seus saberes, se identificar enquanto classe, e projetar utopias em busca por emancipação.

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