A escola vai precisar oferecer alguma coisa interessante para compensar” o limite do uso do celular em sala de aula: que tal apropriação do conhecimento que garante nossa preservação como espécie?

Analise da Silva

Segunda-feira, dia 13, terceira semana de janeiro, estava no gabinete que ocupo na Faculdade de Educação da UFMG quando recebi uma chamada telefônica. Era uma repórter perguntando sobre a minha disponibilidade para uma entrevista. Informou que estava fazendo uma matéria sobre a sanção do presidente Lula à lei que proibia  celulares nas escolas. Queria ouvir a avaliação de profissionais da área sobre esse tópico. Disse que as perguntas seriam se na teoria é mais fácil do que, na prática; se os profissionais da educação estão preparados para lidar com a resistência dos alunos, especialmente os maiores, enfim, segundo ela, queria entender mesmo. Informou que naquele dia mesmo enviaria as perguntas e pedia que eu gravasse um áudio, se possível, porque para ela “fica melhor”. Inicialmente seria para o portal de uma grande emissora de rádio.

Perguntei a ela se o que eu dissesse seria divulgado e expliquei os motivos da minha pergunta. É bastante frequente darmos entrevistas e haver cortes que, por vezes, descaracterizam o que dissemos. Sério. Já dei entrevista de 40 minutos da qual foi pinçada uma frase e que descontextualizada significou o contrário de tudo o que eu disse. Como ela me afirmou “Bom, da minha parte, isso não irá acontecer, mas entendo caso não queira dar entrevista”, aceitei o convite. E ela emendou dizendo que “Mas entendo as suas ressalvas. É uma situação chata mesmo”.

Ela enviou as perguntas, pediu que retornasse em no máximo uns 50 minutos e, como havia me dito que queria entender, me pus a explicar, inicialmente dizendo que avalio que para explicitar a análise que eu faria era importante compreender que tecnologia é algo que usamos desde quando nossos antepassados estavam nas cavernas e construíram instrumentos que permitiram que a humanidade perpetuasse a espécie. 

Fiz uma analogia para me fazer entender, informando que lápis é tecnologia. Usar um lápis é algo tão simples e natural, que chega a ser difícil imaginar que para que cada um deles seja fabricado é necessário esperar 25 anos e contar com o esforço de muitas milhares de pessoas no meio do caminho. Anualmente, quase 2 bilhões de ecolápis são produzidos no Brasil e exportados para os quatro ou mais cantos do mundo. Mesmo com uma escala tão grande, isso não tem impedido que a sustentabilidade seja considerada em todas as etapas do processo. E, para isso, é preciso contar com muito conhecimento e esforço para transformar negócios tradicionais em negócios sustentáveis. A tarefa é difícil, mas não é impossível. E algumas fábricas de lápis têm conseguido, enquanto outras não têm nem tentado.

Outra comparação que fiz foi com o fato de que alimento é tecnologia. A Tecnologia em Alimentos é uma área multidisciplinar que envolve conhecimentos de química, física, biologia, engenharia e tecnologia da informação. Seu objetivo é garantir a qualidade e a segurança dos alimentos desde a produção até o consumo final, por meio do controle de processos, de matérias-primas e de equipamentos. Tecnologia. E isso vale para o MST que tem como princípios fundamentais a busca por uma transformação social, uma sociedade justa e igualitária, sendo possível por meio da queda do sistema capitalista e para o agronegócio que tem como princípio fundamental a livre iniciativa e concorrência, que entende que devemos preservar o sistema capitalista.

Depois das duas analogias para contribuir com o entendimento que a moça me disse almejar, frisei que todas as pessoas usam tecnologia. Ocorre que algumas delas nos aproximam enquanto seres humanos que somos. Outras nos distanciam. Explicitei que me referia aos celulares, em especial. Os aparelhos, desde os primeiros no início da década de 1970 até hoje, evoluíram para os smartphones. Lembrei que há cientistas que avaliam que, em breve, eles serão uma extensão do nosso próprio corpo. Manifestei minha descrença nessa tese ou pelo menos o meu desejo de que não se comprove, expressando um potente “sei não” no áudio que estava gravando no WhatsApp.

Retomei o ponto dizendo que como fazemos isso desde que existimos, frear a tecnologia vai significar contrariar a caminhada da humanidade na busca pela sua preservação. Ocorre que, em relação ao uso dos smartphones, a possibilidade de questionar essa contribuição no uso feito por crianças e adolescentes é bastante real. Foquei no fato de que costumamos ler, ouvir e até dizer que “as crianças de hoje já nascem sabendo usar o celular”. Discordante, disse que ocorre que isso não é uma habilidade umbilical. Elas não saem de nossos úteros sabendo fazer isso. Aprendem. Aprendem enquanto nós as amamentamos clicando nos nossos celulares; enquanto nós as deixamos em frente aos vídeos para podermos descansar por 30 minutos ou prepararmos o próximo lanche. Aprendem. 

São crianças e adolescentes e assim como nós, pessoas adultas e idosas já relatam sintomas de vista cansada, de ansiedade, de dores no pescoço… E 45% das que estão na escola revelam que se distraem com o uso dos dispositivos digitais durante as aulas e outros 40% dizem que se distraem ao verem colegas utilizando. Fulana, não há dúvidas: seja pela experiência de cada pessoa docente, de cada família, de cada estudante ou de pesquisas que tratam desse assunto. Não há dúvida. 

Disse à repórter que, na minha avaliação, enquanto pesquisadora, formadora de docentes para atuar na Educação Básica há 16 anos e ex-docente da Educação Básica nos 29 anos anteriores, os benefícios de limitar por meio de uma legislação o uso dos dispositivos computacionais (computadores, celulares, tablets e notebooks) em sala podem ser comprovados em matéria na mídia divulgada naquele mesmo dia na qual o estudante pergunta “E o que eu vou ficar fazendo o tempo todo” e em que a mãe dele diz que “A escola vai precisar oferecer alguma coisa interessante para compensar” o filho dela de não poder usar o celular. 

Será MUITO benéfico, quando nossa sociedade voltar a compreender que para garantir a nossa preservação enquanto espécie é necessário bem mais do que a procriação. É necessário a apropriação do conhecimento construído pela humanidade para que a nossa humanização não se desfaça. Lamentavelmente, permitimos que a negação da ciência, da importância social da escola, da manutenção de nossas instituições caminhando sempre lado a lado com o avanço tecnológico fosse entendido como progresso. 

Fui enfática ao dizer que, embora estejamos no século XXI, ainda precisamos de leis que proíbam relações sexuais com crianças; que proíbam matar torcedores de outro time de futebol; que proíbam espancar pessoas que tenham orientação sexual diferentes das nossas; que proíbam matar pessoas com quem nossos relacionamentos não deram certo; que proíbam apedrejar pessoas que tenham religião diferente da nossa; que proíbam amarrar ao poste e espancar pessoas negras até a morte e… que proíbam ou limitem que estudantes vão para a escola e não prestem atenção às aulas por terem o vício em celular, também conhecido como nomofobia. 

Expliquei que nomofobia é a angústia ou o desconforto causado pelo medo de ficar off-line, ou seja, pelo medo de ficar incomunicável por meio da internet, do computador ou do telefone celular. Informei que a Organização Mundial de Saúde (OMS), orienta para ser feita a inclusão desse transtorno no Código Internacional de Doenças (CID-10). Frisei que passou do tempo de considerar o uso excessivo das novas tecnologias de mídias como fator impactante na saúde das pessoas. Expliquei que discordo de parte do texto da Lei sancionada, quando se refere a “saúde mental”, uma vez que sabemos que psicólogos e médicos psiquiatras, devidamente registrados em seus conselhos federais, são os profissionais capacitados para tratar da saúde mental. Professores podem contribuir com a saúde emocional de estudantes, porque saúde emocional é a capacidade de lidar com as emoções e sentimentos com equilíbrio.

Disse que estava preparada para ler o contraponto à minha entrevista com pessoas dizendo “Ah, mas tem aula chata”. Ao que eu responderia: Ixi!! E como tem. Mas que para isso, a resposta é fortalecer a gestão democrática escolar, na qual Colegiados, Grêmios e Assembleias podem e devem deliberar sobre os Projetos Políticos Pedagógicos. Outra possível resposta é que seja obrigatório por lei federal que todas as instituições que formam pessoas para atuar na Educação Básica ofertem disciplinas como Teorias Pedagógicas, Didática das Licenciaturas e não somente da área específica do conhecimento, Tecnologia na Educação, Construção de Material Didático físico e digital, por exemplo. Outra possibilidade ainda é que seja obrigatório que as gestões públicas ofertem formação continuada e liberem seus profissionais para Cursos gratuitos ofertados pelas Instituições de Educação Superior para aprender possibilidades de uso pedagógico de dispositivos computacionais em aula.

Finalizei, explicando que, ao invés de profissionais da educação serem alvos de violência por desejarem que suas aulas contem com a atenção de estudantes, será fundamental que os governantes comecem eles a valorizar as pessoas trabalhadoras em educação. Mas, que eu sabia, os defensores do gerencialismo logo dirão que este é outro assunto. Embora saibam os motivos pelos quais defendo aulas de Teorias Pedagógicas para todas as pessoas futuras e atuais docentes da Educação Básica.

Ah, e antes que eu e todo mundo que leu nos esqueçamos, o que saiu publicado na reportagem foi “Analise da Silva, explica que é preciso “fortalecer a gestão democrática escolar” com colegiados, grêmios escolares, assembleias e a própria comunidade irão poder “deliberar sobre os projetos políticos pedagógicos”.

Sério. Acho que foi a última vez que aceitei convite para a entrevista.

Sigamos.

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