#SôniaLivre, é o Brasil mostrando sua cara
Marilene J. A. Dias da Conceição
Daniel Machado da Conceição
Que país magnífico e cheio de incoerências, para alguns, o encantamento com o Brasil passa pelas diversas nuances de uma nação que consolidou suas instituições, mas permite uma governança repleta de personalismo. É necessário destacar que contradições históricas e sociais estão enraizadas na estrutura de poder, uma herança de valores aprendidos de uma sociedade escravocrata.
Ao refletirmos sobre o país, recordamos a música Brasil, lançada em 1988, na voz do cantor Cazuza (1958-1990). A letra descreve a desigualdade na sociedade brasileira e as relações de poder impostas pela elite econômica. Com um refrão forte, Cazuza faz uma provocação para o Brasil mostrar sua cara.
A partir desse questionamento, começamos a enumerar as maneiras para aprender sobre a cara do Brasil. Entre elas estão: futebol, política partidária, carnaval, educação, literatura, culinária, cinema, música e as relações de trabalho. No rol de possíveis jeitos para observar a face ou as faces do Brasil, variados aspectos poderiam ser citados.
No período colonial e imperial, as relações de trabalho estavam orientadas pela servidão, escravização e o trabalho ‘livre’ quando comparado aos outros dois. Após a Proclamação da República em 1889, um novo país pautado pelo ideal republicano indicava que pelo menos o trabalho livre ou assalariado estabeleceria a forma de organização da relação entre trabalhador e empregador. No entanto, as organizações dos trabalhadores e outros movimentos sociais tiveram que continuamente promover lutas e resistências para a melhora das condições de vida do trabalhador. As convenções e acordos internacionais, durante o século XX, orientaram ou impuseram um ajuste de conduta do país, visando o contínuo aperfeiçoamento da legislação trabalhista e além outras, objetivando garantir e estabelecer direitos e deveres dos cidadãos.
A cara do Brasil, a partir da interrogação do cantor Cazuza, se mostra sisuda, pois, três séculos e meio de um modelo escravocrata não foram superados com uma simples assinatura em um documento e com a chave na porta ou no cadeado.
Em 2025, inúmeros casos de situações análogas à escravidão podem ser observados. Relações de trabalho forçado, sem contrato, sem garantias sociais e previdenciárias. Podemos tristemente dizer que ano após ano milhares de pessoas, adultos e crianças, brasileiros e estrangeiros, são resgatadas de condições precárias (insalubres e perigosas) e da escravização. Em 2023, um caso específico chamou a atenção da sociedade brasileira. Sônia Maria de Jesus, com então 50 anos, foi encontrada na casa de um desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, exercendo por quase 40 anos atividades análogas à escravidão.
Sônia uma menina negra chega à casa do desembargador com 11 anos e passa o restante da sua vida, rotineiramente e sem descanso, privada do convívio familiar e de sair da casa do “patrão” para uma simples atividade de lazer, sem direito a escolarização e a tratamento médico, permaneceu subjugada aos mandos e desmandos da família que a raptou. Surda de infância, não recebeu a acolhida necessária ou se quer foi ensinada na língua brasileira de sinais. Uma completa privação de direitos básicos (saúde, educação e lazer). Em sua agonia para sobreviver e conviver com o opressor, foram criados gestuais básicos e aprendeu a grunhir para se comunicar. A comunicação que Sônia desenvolveu nesse cenário, bárbaro e violento, é uma característica daquilo que lhe foi atribuída, uma condição animalesca.
Em sua resiliência, aprendeu a viver a partir da visão de mundo do seu opressor, as consequências são nefastas quando pensamos nos quase 40 anos de sonhos e possibilidades que permaneceram encarcerados em sua mente e corpo, restrito a um pequeno quarto nos fundos da Casa Grande. Dia após dia, executou tarefas, limpou a casa, lavou roupas, fez comida, cuidou de crianças, organizou o quintal, acordou cedo para aprontar o café da manhã dos patrões, esteve sempre pronta independente do horário para servir quando fosse chamada.
Seu direito à alimentação em relação à quantidade, qualidade e local de consumo, conforme os relatos, foi exercido em separado dos patrões e dependente da boa vontade ou benevolência da família repleta de cidadãos de bem. Brasil! Mostra a tua cara? O país, ao ser representado pelo rosto da Sônia, nos entristece ao visualizarmos um olhar vago, sem perspectiva, que aguarda uma voz de comando para poder agir. A face da Sônia representa a desesperança de uma trajetória tolhida de todos os anseios e vontades de viver, e o mais cruel é que ela talvez nem saiba o que poderia ter vivido.
O resgate da Sônia, aconteceu em 2023, mas registra algo nunca observado, o (des)resgate. Isto é, o acusado de trabalho análogo à escravidão conseguiu, com base no argumento de ser uma empregada, diga-se escravizada, e considerada como membro (parte) da família, o suporto vínculo garantiu sua volta à residência do patrão, prisão. Recordo uma epígrafe no início do capítulo 25 no livro Escravidão, volume III, do Laurentino Gomes, que cita a fala de William L. Yancey, representante do sul escravista dos Estados Unidos, em 1858. A frase diz: “Nós queremos negros baratos, e muitos deles” (Gomes 2022. p. 445).
A referida frase reflete uma visão profundamente racista e desumana que imperava no século XIX, especialmente entre os defensores da escravidão nos Estados Unidos, e que reverbera ainda em nosso país tropical. Ela revela a objetificação e desumanização dos negros e negras, tratando-os como mercadorias a serem compradas e vendidas, ao invés de reconhecer sua dignidade e humanidade, o direito mínimo de ser considerado gente.
Tal citação é um lembrete sombrio das injustiças e crueldades da escravização, além de evidenciar a mentalidade de exploração que sustentou um sistema que desarmoniza a face do Brasil. O peso dessa frase está na sua capacidade de evocar a dor e o sofrimento de milhões de pessoas que foram tratadas como propriedade, e nos convida a pensar sobre as consequências duradouras do racismo e da desigualdade social. A vida da Sônia é um retrato triste da face inglória de um país que continua a exaltar o discurso escravista por meio das diversas relações sociais, inclusive, institucionais.
Portanto, a cara do Brasil apresenta uma face deformada. A prisão da Sônia, submetida a viver com quem lhe expropriou as energias corporais e todos os sonhos de uma vida, é a distorção de um rosto que não temos coragem de encarar no espelho. O empenho no retorno da Sônia ao núcleo familiar nesse momento é uma campanha que ganha força internacional com o slogan #SôniaLivre.
O Brasil, ao mostrar sua cara cheia de contradições, consegue realizar avanços extraordinários no campo jurídico, mas a letra e o espírito da lei não sobrevivem ao mau-caratismo e a hipocrisia de uma elite que exalta a meritocracia, mas vive da exploração do trabalho, dos sonhos e necessidades das classes populares, especialmente, negros e negras. A escravização foi um período de horror em nossa história e que em alguns momentos até nos permitimos pensar que faz parte do passado, porém, quando nos deparamos com casos semelhantes ao da Sônia, nos perturba encarar a face desse país que se mostra rancorosa e parasitária.
Sônia Livre! É um grito que pede justiça, que serve como oportunidade para análise de uma nação que aprendeu a trocar de máscaras, escondendo sua cara para não reconhecer as imperfeições, cicatrizes ou deformações. A luta dos mais variados movimentos sociais para que casos como os da Sônia não voltem a ocorrer, passa pelo apoio da justiça no cumprimento do seu papel constitucional, sem personalismo, atuando com equidade e imparcialidade. #SôniaLivre, significa a busca por liberdade e pode colocar um sorriso na cara de um Brasil merecedor de um instantâneo que reconheça sua grandeza e justiça social.
Notas:
CAZUZA. Cazuza – Brasil (Lyric Video). YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BpfhRnjRvcY&ab_channel=Cazuza. Acesso em: 25 de mar. 2025.
GOMES, Laurentino. Escravidão III: da independência do Brasil à Lei Áurea. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022.
OLIVEIRA, Beatriz de. Sônia Livre: campanha pede liberdade de mulher negra vítima de trabalho escravo. Nós, mulheres da periferia. Disponível em: https://nosmulheresdaperiferia.com.br/sonia-livre-campanha-pede-liberdade-de-mulher-negra-vitima-de-trabalho-escravo/. Acesso em: 25 de mar. 2025.