Soluço dos caimões
Ivane Laurete Perotti
O jacaré é um tronco que pensa
Provérbio Popular
Lagarteiam como se tudo lhes coubesse. O sol. O pântano. A urbe. Especialmente, ela. A cidade, por razões sub-reptícias, atrai os jacarés. Muitos. Às pencas. Não me refiro aos jacarés-do-pantanal, nem aos jacarés-tinga, tampouco aos jacarés-de-papo-amarelo, nem mesmo aos jacarés-açu, jacarés-paguá e, literalmente, não me refiro aos jacarés-coroa. Eles têm o meu respeito. Falo dos homines crocodilorum, ou homo alligators. Os internacionalmente conhecidos, man-alligators. Quase parentes semânticos dos tubarões na ordem das analogias. Estes, engolidores de oportunidades. Os primeiros, maníacos pelo poder. São caimões com o diafragma estufado, soluçando sob vísceras alheias no universo da gananciosa manipulação.
A natureza não prega peças. Com rebites nas escamas, dentes afiados, os crocodilianos, afeitos ao pântano, ao mangue, são o que são. Sem mácula à esfera íntima, os répteis se mantêm fiéis à espécie: predadores oportunistas. Já os parentes semânticos dos tubarões, tão mais oportunistas, apresentam-se exímios criadores de contexto. Trajam verbos. Calçam anedotas. Dançam sob princípios semióticos. Excedem no tamanho do moletom. Na “cara lavada”. Palavras pidonas. Luxo. Lixo. Barbas e curativos. Tantos curativos quanto suportam as telas das prevaricações: barriga peluda, pelada, cortes verticais. Intestino grosso. Tosco. Pernas da conspiração. Tudo muito distante do Poema de Sete Faces (1930), do nascido itabirano: /O bonde passa cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./Para que tanta perna, meu Deus,/pergunta meu coração./Porém meus olhos/não perguntam nada./. Não! Jacarés têm quatro. Patas. Com dedos e garras. Bondes têm janelas. As cambotas pernas da história acertam o passo. Acertam? O mais próximo possível da terapêutica interpretação, já que, por entre dentes de arurás e cações cosmopolitas, a justiça se esgueira.
Eles têm fôlego. Enquanto a filogenia os distingue, analogias e metáforas me perseguem. Fujo para os poemas. Escondo-me nas entranhas dos versos. E neles encontro Manoel de Barros, com seus Poemas Rupestres (2004), emitindo um laudo sobre a tenência da família Alligatoridae e o prisma de um futuro tubarão: /Estava o jacaré na beira do brejo/tomando um copo de sol./Foi o menino/E tascou uma pedra/No olho do jacaré./
Lagarteava o jacaré. Entortava-se o menino! Escamas crescendo no bolso do peito. Garras no coração. Tão empático quanto uma jaca. O caimão brame. Ruge. Urra. Defende-se. O menino cresce. Escamoso. Salteador. Mitomaníaco. Boca de mentiras. Nega a razão. Des/mente o mundo. Inflama a natureza híbrida da alma que o habita. Exalta a ignorância. Coletiva. Projeta-se, locupletando sobre o “Outro”. Mata Lacan sem nunca jamais conhecê-lo. Fere a verve. A ciência. A lógica. E, à sombra dos pântanos fétidos, tecidos na rima urbana das dissimulações, constrói brejos. Ideológicos. Políticos. Econômicos. Coroa, com hálito podre, o discurso da opressão. Perpétua, até que olhos vejam. Ouvidos ouçam. E as palavras naveguem em rios de justiça social. O menino torto cresceu. Torto.
Verdade que Drummond e Barros permanecem incompreendidos, para alguns. Pernas muitas fazem aglomerações. Porém, diante do demérito de personas “sem culatra”, o bonde passa corrigindo a rota. De fuga. De soluços secos. Vazios. Os meninos tortos? Empunham ensaiadas máscaras de comiseração. Arrependimento nenhum. Vísceras ideológicas extirpadas em /dó/. Ré: desengate ideológico. Sol: para os répteis semiaquáticos. Aos demais, a lei. Gradeada de ferro e silêncio. Ostracismo radical. Vale rima?
Assim corre o mundo. Entre polos e metáforas. Guerras e genocídios. Timelines manipuladas. Pântanos e oceanos. Poucas réguas para equilibrar os tempos. Nenhuma conexão ética para amarrar alianças de equidade social. Vivemos ilusões: efeito manada. Efeito borboleta? Os caimões soluçam na jugular dos verbos dicendi. Os “tubas”, disfarçam projetos de arrimo. Vale pensar que, afora as analogias traçadas neste texto, o provérbio popular “O jacaré é um tronco que pensa”, pode ter sido cunhado por séculos de sabedoria . E estamos atrasados na percepção da realidade aparente. Virtual. Quimérica. Vence quem tem mais. Dá um like?