Silêncio a preço de custo
Ivane Laurete Perotti
Pagou entrada. Acrescida ao valor, a comanda do silêncio: total; mínima interação; interação reduzida à mesa. Primeira opção. Justiça fosse feita: a propaganda não era a alma do negócio. Necessidades sim. Entrara ali para isolar-se. Bastavam as pegajosas memórias do dia. Chefes. Colegas. Subchefes. Celulares. Bipes. Relações urbanas de interação ininterrupta. Meneios de uma etiqueta exaustiva. Interagir para bater a meta. Socializar para sobreviver. Cansava-se das exigências não proferidas. Presentes. Todas elas. A espetar-lhe mente e espírito.
A casa não prometia silêncio interno. Nem impedia que as vozes vizinhas avançassem o limite entre as mesas baixas. Muitas. Próximas. A conversa alheia não incomodava. Pagara silêncio total para si. Direito garantido a nenhuma interação verbal. Não verbal. Apontara prato e bebida. Aguardava em paz. Sem perguntas. Sem olhares convidativos para entabulação. Livrara-se do “por favor”, “muito obrigado”, “por gentileza”.
Sua mesa, entre outras, destacava-se pela cor da decoração. À parede, uma legenda criativa e bem-humorada indicava os níveis de silêncio. Incluso no primeiro, sentiu algo como um frio elétrico percorrer o corpo. Seria normal? Ele estaria nos graus aceitáveis de normalidade? Um olhar disfarçado em “ginástica de pescoço” mostrou outras mesas com o mesmo layout. Os isolados jantavam em plenitude. Várias camadas. Idades diferentes. Marca comum: sem interação. Os atendentes atendiam sem se dirigir ao atendido.
A incômoda eletricidade chegou aos lábios. Mordeu-os com força desnecessária. Respirou fundo. Ansiedade? Adequação. Certamente. Adequação ao próprio espaço. Único. Sem demérito às regras de boa convivência. Urbanidade, sim. Silêncio social, também. A gastronomia do silêncio ganhava destaque. Se fazia constar em todas as casas de sucesso. Serviço completo. Clientela satisfeita.
Estranhou a primeira garfada. Conteve a tempo o braço que se erguia para chamar o garçom. A tempo. Isolado estava. Isolado permaneceria. Verdade que era um isolamento de véspera. Aquele tipo que atende a uma estratégia, tão somente. Tem um campo definido e um tempo limitado. Enquanto permanecesse ali, àquela mesa, ninguém o interpelaria. Nem mesmo o melhor amigo, caso tivesse um. Era determinante, para qualquer frequentador, aceitar as regras da casa. E não se ouvia falar de alguém que estragasse a compra. Produto pago. Produto garantido.
O prato fumegante aflorou à mesa. Não viu as mãos que o depositaram. A bebida chegara. Sem comentários. Sem a obrigatoriedade do meio sorriso. Do agradecimento etiquetado. Pagara pela permanência silenciosa e ausente. Quase. Quase ausente. Internamente, as autocríticas martelavam lugares-comuns: fugia à realidade. Escondia-se. Tornava-se antissocial.
Que fosse. Experimentava-se ermitão urbano. Cosmopolita. Recriado, o silêncio social, não abolia os ruídos presentes. Decibéis normais. O “outro” é que era impedido de se aproximar. De interagir. Esse era o silêncio em promoção. Algo como o apagamento das presenças. Reuniam-se muitos. Interagiam com moderação. Ou , a seu exemplo, não interagiam. Mercado crescente. Fila formava-se do lado de fora do restaurante. E não apenas daquele.
Voltou a cabeça para ouvir melhor as conversas audíveis. Narrativas do dia. Uníssonas. Reclamações. Jocosidades. Repetia-se o palco. Lugar de todos. De nenhum, de fato. Passageiros de uma rotina traduzida em vida. Resumo de tarefas. Qualidade baixa. Próximos por necessidade. Distantes pela superficial atuação no mesmo ato.
O frio voltara. Uma porção da batata sauté agarrara-se à garganta. Tentativas de engoli-la levaram água aos olhos. Afogava-se. Antes que o absurdo fim chegasse, sentiu a força de um braço levantá-lo da cadeira enquanto manobras pressionavam a boca do seu estômago. A porção de batatas atravessou a mesa com tal veemência que uma reprise das últimas horas lhe tomou de assalto. A vida dançou pela retina dos olhos.
Recuperado, desceu o guardanapo à mesa. Respirou fundo. Sem terminar o jantar, agradeceu o atendente e retirou-se, sorrindo, diante da gerência, incrédula.