“Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?”

Paulo Henrique de Souza

A pergunta de Bertolt Brecht ecoa com uma inquietante atualidade quando observamos os paradoxos de nossa sociedade. De um lado, a proliferação de bebês reborns — bonecas hiper-realistas que simulam crianças de verdade, muitas vezes tratadas como seres vivos, vestidas, embaladas e até “amamentadas” por adultos. Do outro, a realidade da Educação Infantil no Brasil, onde milhões de crianças vivem em condições precárias, sem acesso a creches de qualidade, e os números de adoção permanecem baixos, com milhares de crianças institucionalizadas à espera de um lar.

Que país é este?

Um país onde adultos gastam milhares de reais em bonecas que simulam afeto, enquanto crianças reais são negligenciadas. Onde a indústria dos reborns cresce exponencialmente, mas as políticas públicas para a primeira infância seguem insuficientes. Onde há filas intermináveis para adoção, mas também uma burocracia que desestimula famílias dispostas a acolher.

Que mundo é este?

Um mundo que romantiza a ideia de cuidado, mas falha em garantir o básico: educação digna, afeto real e oportunidades para os que mais precisam. Um mundo onde o simulacro — a boneca perfeita, imóvel, controlável — parece mais desejável que a complexidade de uma criança de verdade, com suas demandas, risos e lágrimas.

Brecht questionaria, certamente, a inversão de valores que nos faz priorizar o artificial em detrimento do humano. Defender o óbvio, hoje, é lembrar que nenhuma boneca — por mais realista que seja — substitui o direito de uma criança a um lar, a uma escola, a um futuro.

Na perspectiva de Zygmunt Bauman e sua teoria da modernidade líquida, vivemos em uma sociedade onde os laços humanos, os valores e as instituições se dissolvem na fugacidade do consumo e do efêmero. As relações se tornam descartáveis, os problemas estruturais são mascarados por soluções instantâneas, e o indivíduo é levado a buscar satisfação em simulacros — como os bebês reborns ou as interações virtuais — em vez de enfrentar as complexidades do mundo real. Nesse cenário, a Educação Infantil e a adoção tornam-se questões “sólidas” demais para uma cultura que privilegia o imediatismo, o estético e o emocionalmente palatável. A liquidez social explica, em parte, porque muitos preferem o controle afetivo de uma boneca hiper-realista ao compromisso exigido por uma criança de verdade.

Que sociedade do espetáculo é esta?

Já a sociedade do espetáculo, conceito cunhado por Guy Debord, revela como a vida real foi substituída por sua representação — uma encenação midiática que transforma até as mazelas sociais em entretenimento. Enquanto vídeos de reborns viralizam nas redes sociais, a situação das crianças em abrigos ou a precariedade das creches públicas vira pano de fundo invisível. O espetáculo nos distrai, nos anestesia, fazendo com que debates urgentes — como a reforma do sistema de adoção ou o investimento em educação básica — sejam eclipsados por narrativas superficiais. Nesse teatro do absurdo, a realidade é apenas um cenário a ser customizado, e suas demandas mais urgentes ficam à espera de um público que nunca para de aplaudir ilusões.

Nesse contexto, não seria exagero dizer que regredimos a uma espécie de panem et circenses — a política do pão e circo que mantinha as massas romanas distraídas enquanto o império enfrentava crises profundas. Hoje, as bonecas reborns, os filtros de realidade virtual e o entretenimento digital cumprem o mesmo papel: anestesiam a consciência coletiva, desviando o olhar das emergências sociais. Enquanto adultos se emocionam com simulacros de maternidade, crianças reais esperam em abrigos superlotados, escolas públicas lutam por recursos mínimos e o sistema de adoção permanece engessado. O “circo” contemporâneo — seja na forma de consumo fetichizado, seja no culto às aparências — garante que as multidões permaneçam passivas, entretidas, mas nunca verdadeiramente mobilizadas para transformar a realidade.

O paradoxo é cruel: quanto mais avançam as tecnologias que simulam a vida, mais arcaicas se tornam nossas respostas aos problemas reais. A sociedade líquida de Bauman dissolve compromissos, a espetacularização de Debord banaliza o sofrimento, e o panem et circenses moderno nos entrega migalhas de prazer instantâneo em troca de nossa indiferença. Que futuro terá um país — ou um mundo — que troca a urgência da infância pela sedução do espetáculo? Enquanto isso, as crianças de carne e osso, aquelas que choram, aprendem e sonham, seguem à margem, esperando que a farsa acabe e a história as enxergue, por fim, como prioridade.

“Que tempos são estes?” – Tempos em que precisamos repetir, incansavelmente: crianças não são objetos de consumo. Cuidar delas não é um hobby — é uma obrigação coletiva e civilizatória.

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