Tive a oportunidade de realizar uma pesquisa com um grupo de crianças entre 7 e 9 anos, no mês de dezembro de 2020, na região sudoeste de Belo Horizonte. O contexto pandêmico provocado pela COVID-19 exigiu a construção de condições sanitárias seguras e uma aproximação bastante familiar com as crianças e suas famílias para que os encontros para a pesquisa fossem possíveis. Reunimo-nos em um grande quintal arborizado, com cantos para brincadeiras, mesas e muitos materiais para que todas as crianças pudessem expressar, contar e registrar como foram as suas experiências cotidianas durante o período de confinamento.
Esse estudo reforça a compreensão de que as crianças leem o mundo com lentes ampliadas, sentem, angustiam-se com os desafios das realidades presentes e encontram alegrias e realizações nas minudências do cotidiano. Em seus registros, as crianças nos demonstram como o imaginário possibilita novas construções do real. Trata-se de uma dimensão do ser humano que integraliza o corpo, a alma e a mente. As crianças o nutrem por meio de suas inúmeras experiências, incluindo aí as várias brincadeiras do dia-a-dia, as interações com o mundo tecnológico.
Entre as crianças do grupo da pesquisa, a leitura da palavra escrita ficou distante. O que vocês leram durante este período? Foi a pergunta dirigida a elas durante a roda de conversa. A leitura mesmo, no sentido prazeroso e espontâneo, parecia não ter fixado lugar e nem ocupado um tempo na rotinas das crianças. Não havia muito material para se ler em suas casas, algumas tinham acesso apenas aos livros didáticos, muitas vezes do ano escolar anterior. No entanto, foram se lembrando aos poucos e de repente a resposta começou a ser tecida por uma e outra criança até que todas, entusiasticamente, passaram a concordar. O encontro com a leitura se deu pelas HQs. Não havia muitas nas casas das crianças, mas pelo jeito foi possível ler o que estava ao alcance. Leram todas as revistinhas da Turma da Mônica a que tinham acesso e ainda me perguntaram se eu tinha alguma para emprestar. Que tipo de encantamento é esse que essas narrativas gráfico-visuais promovem entre as crianças?
Não é difícil responder a essa questão, pois acredito que todos nós que tivemos acesso às narrativas em quadrinhos nos encantamos e, por vezes, até nos tornamos leitores ávidos desse tipo de histórias. Na escola, trata-se de um gênero reconhecido e valorizado somente nas últimas décadas, pois era visto como uma obra de valor menor, ler um gibi, na escola, era um ato de subversão.
Então, vamos lá, considero que a familiarização com os personagens do universo ficcional da obra promove uma forte ligação entre o leitor e a narrativa. Os gibis da Turma da Mônica apresentam personagens que estão entre nós há várias gerações e que, num contexto transmidiático, transitam por várias mídias, cujos conteúdos são reinventados a partir de cada uma delas. Essa intimidade construída permite que o leitor encontre nas narrativas mais do que uma história, trata-se de encontros, da constituição de uma rede de afectos, no sentido de uma emoção vital, capaz de tocar e transformar (MELO, VASCONCELOS, OLIVEIRA, 2020). Um desses encontros ocorre por meio da leitura fluida, no qual a descodificação da palavra não é o único caminho possível para a leitura do texto. Outros elementos como a expressividade corporal dos personagens, as onomatopeias, o tamanho das letras, o contorno dos balões, as figuras cinéticas e as metáforas visuais compõem o todo da história. Ao ler, as crianças combinam todos esses elementos da história ou algumas delas e, a partir dessa incursão, são capazes de inferir quadro a quadro, guiando-se pela sequência da história, o imaginário se encarrega do restante. Sentem-se leitores competentes ao tornar o texto algo próprio, próximo, íntimo.
As crianças encantam-se com a linguagem multimodal dessas narrativas aventurescas e bem-humoradas. Ler as narrativas em quadrinhos também é uma forma de (re)encontro com o desenho, uma das primeiras expressões da criança, resultante do gesto e da emoção que, com o tempo, ganha simbolismo. É, portanto, uma experiência que funde o desenho, o gesto e a emoção.
Segundo Cecília Meireles, são as crianças que delimitam com suas preferências o que é para elas arte e literatura. As HQs ocupam esse lugar para as crianças. Um lugar desescolarizado, livre para tecer o imaginário e apoiar suas fortalezas.
Para saber mais:
MELO, Marcos Ribeiro; VASCONCELOS, Michele de Freitas Faria de; OLIVEIRA, Roselusia Teresa de Morais. Por uma infância da escrita e da leitura. Revista Brasileira de Alfabetização, 2020.
Imagem de destaque: Lidyanne Aquino / Flickr