Universidade administrada (I) – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

Há alguns anos, instada a responder a um questionário sobre a situação dos intelectuais, Susan Sontag disse que preferia aqueles que se posicionavam publicamente, que apresentavam um sentido ético para suas ações. Sontag foi uma das intelectuais mais importantes das últimas décadas do século vinte e sua morte prematura (sempre é breve a vida de uma incomparável inteligência) há dez anos nos priva de um pouco de luz sobre o complicado contemporâneo.

Com fama de menina prodígio, Sontag graduou-se aos dezoito anos em Harvard, mas, apesar de todos os prognósticos, não concluiu o doutorado. Fora da carreira universitária, desenvolveu um rico percurso, ocupando-se de todo tipo de tema, da experiência do adoecimento ao fascismo e à literatura francesa, da estética camp ao cinema e à fotografia, de Nietzsche e Canetti a Machado de Assis. Apesar da frenética produção ensaística e dos romances bissextos, Sontag nunca distanciou-se do engajamento político, ao contrário, não separou uma coisa da outra. Posicionou-se contra a mortificação da dor produzida pelas fotografias de guerra, visitou Hanói em plena Guerra do Vietnã, montou Samuel Beckett numa Sarajevo sob bombardeio.

Parece evidente que a prima donna da intelectualidade nova-iorquina não teria feito o que fez se ao invés do pensamento simultaneamente extravagante e acurado que sempre cultivou, houvesse se ocupado do cotidiano universitário em algum departamento de Humanidades nos Estados Unidos, na França ou onde quer que fosse.

A vida acadêmica parece incompatível com o mundo intelectual, pelo menos quando consideramos que ela se refere a ocupar-se de grandes questões da sociedade. Ou mesmo das que poderiam ser chamadas de pequenas, cotidianas, mas que evocam a liberdade de pensamento, de análise reflexiva criativa, livre, expansiva. Bem, talvez a incompatibilidade não seja completa, mas as afinidades entre uma e outra são, por paradoxal que pareça, muito poucas. Pontuo, sem pretensão de esgotar o tema, algumas das características da cultura universitária, em especial a brasileira, que parecem motivar esse distanciamento.

Temos muita afeição a tarefas administrativas. Para muitos de nós a gestão não é uma atividade mediadora do cotidiano, mas uma finalidade do trabalho docente. Observamos isso no grande número de cargos, instâncias, colegiados, câmaras, comissões, conselhos, comitês, representações etc. presentes na estrutura universitária. Como me disse um amigo, muitos de nós confundimos ação política com tomar parte da burocracia. Lembre-se que o concurso que os candidatos a professor universitário prestam para o ingresso em uma instituição pública não supõe conhecimentos de gerência. Em meio à recente crise na UFSC gerada pelos impasses quanto ao cumprimento de seis ou oito horas de trabalho diárias pelos servidores técnico-administrativos, vários chefes de departamento se declararam impossibilitados de controlar o horário de ingresso e saída de seus subordinados. Uma das razões alegadas foi, exatamente, a falta de preparo para a gestão.

Assumir tarefas administrativas ou de representação pode ser trabalho coletivo e politicamente engajado, o que é muito bom sempre que o ar respirado seja o da democracia. Mas também pode ser uma boa maneira de se esquivar do tempo que, mais livre, deveria ser dedicado ao ensino, à pesquisa e à extensão. O tempo para pensar.

O apego à gestão e à representação convive com a terrível falta de infraestrutura e regularidade administrativa, de forma que o professor, pesquisador e extensionista torna-se inevitavelmente não apenas um homem ou mulher de escritório, mas um gestor de si mesmo, de sua carreira e da de seu grupo de pesquisa. Individualismo e tecnocracia convivem bem nesse quadro. 

Outro problema que a vida intelectual na Universidade enfrenta é a avaliação, ou melhor, sua perversa obsessão por parte dos colegas. São muitos momentos de avaliação que devem contar com várias comissões formadas por não se sabe quantos membros e mais um número correspondente de suplentes. Isso vale para projetos de mestrado e de doutorado, no caso dos docentes que atuam na pós-graduação, tanto quanto para uma simples progressão funcional de um colega de departamento.

Tenho a impressão de que isso se deve, sobremaneira, à nossa velha tradição aristocrática, cartorial e pouco afeita a direitos. Onde persevera a cultura do favor, é preciso, a todo custo, oferecer simulacros de republicanismo, de forma a tentar exorcizar suspeitas. É grande o número de formulários a preencher, prazos administrativos a cumprir, ofícios a escrever, carimbos e assinaturas a recolher. Tudo é exigido em nome da lisura dos processos, mas com isso se acaba por transferir a responsabilidade dos atos para o “sistema” que “pode sair do ar” ou “não responder”, como se tivesse vida própria. Somos nós que geramos e gerimos o “sistema”, que o mantemos vivo.

Faço um parêntese. Tudo isso se agrava porque gostamos de cultivar os rituais acadêmicos, a pompa e a circunstância para discussões mesmo sobre temas de trabalho diário, como a mudança de carga horária de uma disciplina ou os critérios de abertura de vaga para concurso. De todos os órgãos que frequentei na UFSC, o pior de todos é o Conselho Universitário, em que não são poucos os que se dirigem aos colegas pelo tratamento de “Nobre Conselheiro”, mesmo que para espinafrar uma posição discordante. Mas algo semelhante acontece mesmo em reuniões de departamento, onde as pessoas não apenas se conhecem, como até dividem sala, mas não se furtam de manter a empolada afetação no tratamento. 

Em grande medida essa dinâmica de funcionamento da Universidade é também a da pesquisa e da pós-graduação, estruturas que deveriam proporcionar (e para as quais nós deveríamos proporcionar) liberdade de pensamento. Não é assim. Frequentemente apostamos no que certamente trará um resultado publicável, mas não em novas formas de pensar sobre um problema, de formulá-lo. Luciano Faria Filho já destacou que a multiplicidade de tarefas universitárias nos pesa e torna a atividade de pesquisa mais difícil, muitas vezes realizada fora do horário de trabalho, com as consequências pessoais que todos conhecemos. Estou de acordo com ele, como já escrevi em resenha publicada no ano passado. Agrego algo a esse diagnóstico, nem tanto em relação ao adoecimento e à sobrecarga de trabalho, mas à mentalidade administrativa que toma a pesquisa. Um pouco mais de pensamento, imaginação, criatividade, estudo, risco, outro tanto de renúncia à “utilidade” de uma pesquisa, principalmente se ela for meramente a geração de um artigo, parece necessário. Sem pensamento, não há liberdade, como foi bem destacado por uma kantiana Hannah Arendt. Sem liberdade de pensamento não há crítica. É bom lembrar de Susan Sontag.

Sul da Ilha de Santa Catarina, novembro de 2014.

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