Uma vivência na EJA

Paula Lopes Aquino da Silva*

Este texto tem como objetivo explicitar a minha vivência referente à Educação de Jovens e Adultos (EJA) que ocorreu no primeiro semestre de 2019 em uma escola municipal localizada no bairro Lindéia, em Belo Horizonte – MG. A vivência se refere ao estágio curricular obrigatório dos cursos de licenciatura da Universidade do Estado de Minas Gerais. Para explicitar a experiência, apresentarei dois trechos registrados no caderno de campo: um com a temática pobreza derivado de uma aula de Literatura que os sujeitos tiveram; outro, que surge como um relato significativo de uma discente da EJA.

A modalidade EJA foi estruturada em disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e Assunto Diversos (Literatura, História e Geografia). A aula que será utilizada como exemplo se relaciona com a disciplina de Assuntos Diversos, na qual foi abordada a temática da “Pobreza”. A professora fez uma sequência de aulas abordando esse tema e, em uma delas, apresentou aos educandos a música“Comida” do compositor Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto. Em outra aula, o foco foi a obra “Os retirantes” de Cândido Portinari (1944). A primeira atividade se iniciou com as perguntas: “O que é erradicação? Como erradicar a pobreza?”, “O que é pobreza? aumentar ou diminuir”, no qual foi propício para a escuta da docente sobre o que os estudantes compreendiam sobre o tema.
Eles responderam:

Existe pobre patrão;
Existe rico patrão;
Existe o povo que serve;
Mas não existe patrão que é servo.

Na visão dos estudantes, a miséria existiu nos tempos dos avós e dos pais e para eles, atualmente, só existem pobres, pois, muitos ainda vivem em situações precárias, mas, que não se comparam a miséria que os avós e os pais viveram no passado.

Bebida é Água!
Comida é Pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida diversão e arte
( ANTUNES, A; FROMER, M, BRITTO, S Música – COMIDA )

“Hiato” é um documentário (2008) de Vladimir Seixas que mostra a visão dos manifestantes marginalizados que reivindicaram o direito ao lazer por meio de uma manifestação pacífica realizada em um shopping da zona sul, do Rio de Janeiro. O documentário mostra a narrativa daqueles que não são ouvidos.

Qual a relação do documentário Hiato com a EJA? O documentário explora um dos pontos descritos no artigo VI da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma: “ todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”( AssembleiaGeraldaONU,1948). Sendo assim, todo ser humano possui o direito de ocupar os espaços e de ser respeitadoem sua integridade, de modo que nenhum direito seja violado.

Pensando nesse ponto, podemos relacionar o direito de ser com o direito à educação, que nos leva aoargumentoapresentado no documentário: “o direito é para todo mundo.” ( HIATO, 2008)

Assim como aqueles que cruzam a linhas invisíveis que separam os “do Norte aos do Sul” como explicita o autor Boaventura de Souza Santos (2007), “uma fronteira dos sem, e os do com” (HIATO, 2008) que separam os “opressores dos oprimidos” como destaca Freire (2003), cruzar a linha é ter consciência da condição em que se encontra, “[…] Somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam”. (FREIRE, 2003,p.43) . Quando se cruza a fronteira, cria-se uma força que estremece, que por consequência incomoda o outro lado. A EJA é um direito conquistado e regulamentadoque possibilita oacesso à educação aos sujeitos que não tiveram a oportunidade de iniciar ou finalizar os estudos, e, assim, ocupar um espaço que é de direito.

Por que você está estudando?

O que começou com uma pergunta simples, se tornou uma conversa complexa, na qual a resposta foi elementar para o meu percurso enquanto estudante e estagiária, pois propiciou a compreensão do ser sujeito pertencente à EJA.

Durante minha experiência, tive contato com Sra. D., mãe, esposa e mulher negra que reside na periferia de Belo Horizonte. Sra. D. relatou que sempre teve que trabalhar para prover o sustento de sua família e voltou a estudar, pois sentiu que estava na hora.

A conversa se iniciou quando a Sra. D. me perguntou qual era a minha idade. Quando respondi, ela falou: “Você é muito novinha, tem muito o que viver”. E continuo: “Tem que estudar mesmo, e depois conseguir um bom serviço”. Perguntei em seguida: “Por que você está estudando?”. Ela parou, ficou em silêncio; terminou a fase do jogo, e começou a falar. Ela não me contou o porquê. Ela me contou a sua história de vida e depois disso compreendi mais sobre esse ser humano.

A Sra. D. contou que, quando pequena, foi dada pela mãe e ficou órfã nessas casas de acolhimento. Quando cresceu, não queria nada sério com a vida, saia para a rua para beber, fumar e se prostituir. Depois se tornou religiosa e encontrou Jesus, nas palavras dela. Ela disse: “Independe da religião, Deus é um só” . Ela disse que depois se casou, teve um filho que ficou 10 anos no hospital com uma doença na bexiga, e antes dele nascer tentou estudar. Ela acrescentou: “Pensa em alguém que não sabia de nada”. Faz dois anos que ela está na escola e pegando firme e disse que já aprendeu muito.

No relato Sra. D, disse:

“Sei fazer um pouco de tudo: Cozinho, faço doces, arrumo cabelo, faço unha, faço faxina, mesmo que ninguém pegue mais faxineira […] Sofri demais, não quero que meu filho sofra igual a mim. Meu marido é doente, não posso trabalhar de carteira assinada, se ele passa mal, quem vai levar ele para o hospital? Eu vendo amendoim, as bananinhas, as cocadas, porque isso me ajuda em casa. Eu voltei a estudar, porque achei que tava na hora, eu gosto de fazer cursos, mas, preciso de saber ler e escrever, porque preciso de certificado que eu fiz.”

Durante o período tornou-se possível observar de perto as vivências tão plurais e singulares dos atores sociais pertencentes à EJA, o que contribuiu para minha reflexão sobre quem são esses sujeitos, quais são suas reais necessidades e quais foram os motivos que os levaram a retornarem aos estudos, além de pensar em outros aspectos da modalidade, como a arquitetura da escola, a organização dos espaços, rotinas, o currículo invisível e, por fim, a maneira como se estabelece as relações entre os educandos e os educadores.

*Graduanda do 6º período de Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG/ Ibirité

 

Referências:

COMIDA. Compositor: ANTUNES, Arnaldo , FROMER, Marcelo, BRITTO, Sérgio. In: Acústico MTV. Rio de Janeiro: Warner Music, 1987. 1 cd, faixa 1 (5:22).

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.art.VI. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948.

FREIRE,P. Pedagogia do Oprimido Rio de janeiro. 36o ed. Paz e terra , 2003.184p.

HIATO. Direção: Vladimir Seixas. Produção: Vladimir Seixas. Roteiro: Maria Socorro e Silva e Vladimir Seixas. Música: Helen Ferreira e Vitor Kruter. Rio de Janeiro (Brasil): 2008. Média Metragem Documental (19 min), sonoro, colorido.

SANTOS , B. de S . Para Além do Pensamento Abissal: Das linhas Globais a uma Ecologia dos Saberes . São Paulo . Novos Estudos.nov.2007


Imagem de destaque: Antonio Cruz/Agência Brasil

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