Transformação social e a EJA

Octávio Henrique Bernardino Ribeiro*

O Brasil melhorou consideravelmente seus índices de alfabetização nos últimos anos, mas por um longo período histórico promoveu a segregação social e racial do acesso à escolaridade básica. Esta foi uma maneira encontrada pela elite para manter seus privilégios, construindo uma cadeia que restringia a uma plutocracia os espaços de poder e prestígio social. Além disso, esta restrição da produção do conhecimento formal a uma pequena parcela da elite branca, arquitetou a construção do um mito de democracia racial no imaginário popular assim como o apagamento de importantes figuras históricas negras, indígenas e de brancos pobres, construindo a história de um país idealizado a serviço de interesses escusos dos detentores do poder político. Estas condições de acesso à educação trazem reflexos aos dias atuais e isso faz com que seja possível identificar, traçando um perfil dos estudantes da EJA, que ainda estamos longe de romper com estas estruturas de dominação.

Este país foi colonizado e construído a partir de uma série de ações violentas que trazem como reflexo aos dias atuais, dentre tantas mazelas, a estratificação social. Esta desigualdade representa uma disparidade entre os direitos que são acessados pelas distintas classes sociais. Quando os portugueses chegaram ao Brasil bastava apenas serem brancos para ocupar lugar de prestígio na sociedade, com a falta de titulações de nobreza no princípio do processo colonizador assim como havia em Portugal e pela escravização de negros e indígenas, o ideal de nobreza é relacionado ao função desempenhada e às posses que estes brancos possuíam. Assim, se constrói no imaginário popular uma hierarquização social que categoriza os sujeitos de acordo com a função exercida e estabelece um idioma da cor de pele, onde habitualmente as tarefas mais difíceis eram designadas aos negros de pele retinta. Numa realidade onde não há acesso universal à educação e esta se destinava apenas aos pertencentes às camadas de maior poder financeiro, a capacidade de compreensão do que é representado a partir da escrita se torna também um fator de categorização dos sujeitos dentro de uma sociedade estratificada. Em uma organização econômica capitalista a remuneração está relacionada ao crédito que se dá à atividade realizada, por este motivo as atividades braçais são as menos valorizadas financeiramente.

Durante muito tempo se alfabetizar era uma conquista para as camadas populares porque representava um símbolo de reputação entre as pessoas, além da possibilidade de iniciar um trabalho intelectual e alcançar maior remuneração. A alfabetização de jovens e adultos é um dos passos para que os sujeitos tenham maior autonomia e possam interagir com a realidade que é representada através de signos linguísticos. Porém, o processo educacional da EJA pode ser confundido com especificamente uma atividade de alfabetização, o que incorre uma inverdade. Esta modalidade de ensino visa promover o acesso à aprendizagem escolar às pessoas que antes em suas vidas não completaram o ciclo de educação formal básica.

Numa perspectiva da educação libertadora, a EJA é ferramenta de direito para emancipação dos sujeitos e construção de consciência crítica do contexto histórico e sociocultural em que estão inseridos os estudantes. Expandir o horizonte de expectativas de maneira que fomente a compreensão de que existem possibilidades de escolhas a partir de formação educacional e outras formas de enxergar o mundo, é fazer com que os estudantes entendam que a educação é necessária ao longo da vida e que, portanto, não existe idade errada para se estudar, além de que somos seres que estão em constante processo de transformação a partir das bases referenciais com as quais temos contato. A interpretação das informações que nos são apresentadas nos faz construir opiniões, estas por sua vez determinam escolhas políticas, sendo assim, saber ler e escrever é de extrema importância, mas saber interpretar o que está escrito e sua relação com a emancipação humana é a parte fundamental do processo educativo na EJA.

“Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”. Esta frase, proferida por Paulo Freire em palestra no Simpósio Internacional para Alfabetização, Persépolis, Irã, 1975, nos aponta a relevância da EJA como política pública para efetivar sua potencialidade na transformação social de cada sujeito e a relevância da compreensão de que esta transformação somente se dará de maneira coletiva. O que “adoça” a uva e lhe dá significado é a construção coletiva.

*Professor da Rede Estadual de Educação de Minas Gerais e de cursinhos populares. Licenciado em História (FAFICH/UFMG). Especialista em ensino de História (PUC/MG). Mestrando do Promestre na linha da EJA (FAE/UFMG).


Imagem de destaque: Leonardo Harim/ TV Brasil – EBC

 

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