Se as pessoas não cumprem as leis é porque não foram bem educadas para isso? – exclusivo

Ana Luiza Jesus da Costa

O debate em torno da redução da maioridade penal tem sido bastante acirrado, muito tem sido produzido sobre o tema, desde análises até slogans. A gravidade do momento justifica o máximo de alarde. Esse pequeno texto procura se somar ao barulho que os opositores da redução vêm fazendo. Sou contra a redução da maioridade penal, concordo que encarceramento não reeduca e nem ressocializa ninguém, as estatísticas e as histórias de vida nos mostram isso. Entretanto, ultimamente, um slogan vem me instigando. “Mais escolas e menos prisões”. Não porque eu seja contra a abertura de escolas, pelo contrário. Me instiga, porque reconheço essa frase na documentação sobre a educação para o povo no século XIX. Era essa a defesa que faziam reformadores sociais, liberais em sua maioria, associando criminalidade à ignorância popular.

Havia, no século XIX, um lorde inglês de sobrenome Macaulay que inspirou bastante Leôncio de Carvalho, ministro dos negócios do Império brasileiro. Leôncio de Carvalho foi quem decretou, em 1878, a abertura de cursos noturnos para trabalhadores nas escolas públicas da corte (cidade do Rio de Janeiro). Macaulay também propusera que a educação na Índia, colônia britânica, formasse uma classe de pessoas indianas de sangue e cor, mas inglesas em gosto, opiniões, moral e intelecto. O ministro brasileiro aprendera com o lorde britânico que as alternativas entre educar e prender eram uma questão de cálculo econômico. Dizia o lorde, tentando convencer o parlamento inglês: “Para cada libra que economizas em educação, gastareis cinco com processos, com prisões, com estabelecimentos penais. Não posso acreditar que quem nunca tendo recusado coisa alguma que se pedisse para manter a ordem e proteger a propriedade pelos meios da pena e do temor, comece a ser mesquinha quando se lhe propõe realizar o mesmo fim tornando o povo mais esclarecido e melhor”.

Passado mais de um século desde tais discursos e esforços vemos, no Brasil, avanços inegáveis em termos de acesso à escolarização. Hoje, o ensino fundamental está praticamente universalizado e é direito subjetivo do cidadão. Precisamos, entretanto, nos perguntar que ensino foi universalizado para quem. Falo das escolas públicas, porque delas me interessa falar. Estas, entram em pauta sempre como instituições em crise, fracassadas, às voltas com a “indisciplina”, ou, atualmente, em vocabulário mais grave, com a chamada “violência escolar”, diga-se de passagem, sempre a do aluno (pobre) e da comunidade (pobre). Para estas instituições mandamos as crianças e jovens. Lá (mas não só lá) eles aprendem, desde muito cedo, a seguir as regras impostas e serem recompensados por isso, ou serem punidos por delas desviarem. Não há espaço para perguntar de onde vêm as regras, ou se elas fazem sentido para a realidade daquelas crianças e jovens. As regras não são pensáveis nem negociáveis. Afinal, professores e diretores, as próprias autoridades educacionais, estão ali para cumpri-las sem tê-las feito.

Certa vez, quando dava aulas na rede municipal de Niterói/RJ, buscava alguma alternativa não punitiva para a “bagunça nossa de cada dia” que dificultava minhas aulas de história. Resolvi usar um conto africano que falava de uma comunidade tradicional onde, no momento do nascimento de um novo membro, era-lhe atribuída uma canção. Em todos os eventos marcantes de sua vida (entrada na fase adulta, casamento, etc.) a canção era entoada. Mas, havia outro momento em que a canção era lembrada – quando este membro cometia um ato antissocial. Em vez de puni-lo, seu povo preferia recordar-lhe quem era, um ser íntegro na coletividade da qual fazia parte. As crianças gostaram da história, da atividade proposta, mas me interrogaram, muito desconfiadas e incrédulas: “eles só cantam a música, professora? Não castigam?”. Céticas crianças de sexto ano, já tinham introjetada em si a ideia de que, sem castigo, não é possível manter a ordem. O mais duro era, porém, escutar de alguns colegas professores, nos bate-papos nos intervalos de aula, ou mesmo nas reuniões pedagógicas e conselhos de classe, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) havia se tornado um problema para a manutenção da disciplina escolar.

Muito vem sendo esclarecido sobre o fato de que não há impunidade, segundo o ECA, para crianças e adolescentes que cometem atos infracionais. E que, para além disso, aqueles sobre os quais a redução da maioridade penal incidirá, já estão “na mira da lei” desde que nascem e, muitas vezes, a pena capital se abate sobre eles mesmo sem direito a julgamento. Basta observar os índices de mortes violentas entre os jovens negros de periferias – muitas dessas, fruto de ações policiais. Mais um dado que vem sendo oferecido pelas mídias alternativas diz respeito ao insucesso em experiências com redução da maioridade penal em outros países onde os índices de criminalidade seguiram inalterados. Enfim, essa não seria a solução para a violência. Mas, ainda podemos pensar, se a cadeia não é solução para jovens de 16 anos, pode ser solução para adultos? Enfim, para quem e para que servem as cadeias?

Em seu clássico Vigiar e Punir, Michel Foucault conta a história da formação da “sociedade disciplinar”, em linhas gerais, a sociedade em que vivemos hoje. Ele mostra como, entre fins do século XVIII e início do XIX, período de amplas reformas sociais, também na educação, há a passagem das penas de suplício para as penas de encarceramento. A justiça não assumiria mais a parte de violência ligada a seu exercício. Estaria respaldada, agora, no discurso racional da pena como correção, reeducação e não punição. O mesmo autor constata, adiante, os discursos contemporâneos sobre o fracasso da prisão como forma de reeducação. Fracasso? Dentro de que parâmetros? Diz Foucault: “temos que admitir que há 150 anos a proclamação do fracasso da prisão se acompanhe sempre de sua manutenção”. Então, supõe: a prisão não visa suprimir as infrações, mas distingui-las, distribuí-las, utilizá-las. Entre tirar a vida de um, ou tirar a propriedade de outro, a mesma pena de prisão será administrada com maior ou menor intensidade. O objetivo precípuo seria afirmar a inviolabilidade da propriedade privada no momento de consolidação do sistema que se funda sobre ela – o capitalismo. Perguntemo-nos, hoje, em meio ao fantástico quantitativo da população carcerária brasileira, quantos ali cometeram crimes hediondos e quantos cometeram crimes contra o patrimônio?

Utopia, seria possível um mundo sem prisões? “Professora, é só cantar a canção sem nenhum castigo?”. Talvez não na sociedade em que vivemos, mas quem disse que ela precisa ser sempre assim? Cada vez mais é preciso imaginar outros mundos possíveis. Creio que a arte possa nos ajudar a olhar além. Num planeta distante, Anarres, inventado por Úrsula K. Le Guin, a manutenção da ordem social acontece de outra forma. É Shevek, o físico anarquista, que procura explicar ao colega Oiie, de um planeta cujos valores sociais são parecidos com os nossos, a ineficiência da coação como meio de manutenção da ordem. “Então – perguntou Oiie bruscamente, como se a pergunta reprimida nele por muito tempo, explodisse de modo irrefreável – o que mantém as pessoas dentro da ordem? Por que não roubam nem se matam uns aos outros? – Ninguém possui nada para ser roubado. Quando se quer as coisas, basta ir pegá-las nos depósitos. Quanto à violência, bem, não sei, Oiie; normalmente você me mataria? E se você tivesse vontade, será que alguma lei o impediria? A coação é o meio menos eficiente de se conseguir a ordem”.

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