Reflexões sobre gênero e educação em tempos de pandemia

Brunah Schall*

Polyana Valente**

Mariela Rocha***

Paloma Porto****

A pandemia da Covid-19 traz à tona diversas questões relacionadas ao gênero – uma categoria ainda controversa e usada com diferentes conotações. Mas quais seriam esses aspectos problemáticos e o como isso está relacionado ao contexto atual da pandemia da Covid-19? Sabemos que as possibilidades de respostas a essa questão são múltiplas. Aqui, iremos aprofundar na visão de cuidado como pertencente ao universo feminino. Como salienta a educadora Guacira Lopes Louro (1997), historicamente as ocupações de enfermagem e magistério tomaram emprestadas as características femininas de cuidado, sensibilidade, amor e vigilância. Essas carreiras estão ligadas historicamente à dupla marca do modelo religioso e da metáfora materna: dedicação, disponibilidades, humildade, submissão, abnegação e sacrifício.

Falar de gênero significa discutir visões sobre masculinidade e feminilidade específicas de determinados grupos, definidos também por religião, classe, etnia, idade etc. O gênero e o sexo biológico, apesar de serem diferentes, estão em constante interação e guardam diversidades, especificidades. Além disso, há diferenças de classe e raça nas relações de gênero que são construídas socialmente em diferentes momentos históricos. Neste texto trataremos especificamente das mulheres.

Louro (2000) destaca que desde o nascimento interagimos com as mais diversas pedagogias de gênero – seja na escola, na família, entre colegas, enfim, nos ambientes sociais em que estabelecemos relações. Propostas de incluir discussões de gênero nas escolas têm sido rejeitadas, especialmente por grupos políticos conservadores e religiosos, como se estas representassem uma imposição de determinada ‘ideologia de gênero’ sobre crianças e adolescentes. Entretanto, os contextos educacionais e o currículo escolar sempre são atravessados por questões de gênero, seja de maneira implícita ou explícita. A diferença é que quando questões de gênero são invisibilizadas na escola, aspectos problemáticos são perpetuados e tomados como natural, e não uma construção histórica e social que pode ser renegociada.

Desta forma, as desigualdades de gênero nas profissões têm diversas implicações. Uma delas é a de reforçar a naturalização do cuidado como trabalho exclusivamente feminino e perpetuar a sobrecarga das mulheres, fato realçado durante a pandemia. Uma educação libertária e democrática requer a desconstrução de visões conservadoras de gênero que reforçam formas de exploração. Ela se faz necessária para que futuras gerações possam fazer escolhas profissionais mais livres e para que o cuidado dentro de casa, com os filhos, com os idosos, com pessoas com deficiência etc. seja distribuído de maneira mais igualitária.

Outra implicação é a precarização das profissões ligadas ao gênero feminino. Enquanto as mulheres predominam nos trabalhos essenciais da pandemia, elas são minoria nas profissões ligadas à tomada de decisão e liderança¹. Essa precarização passa por salários menores, carga horária maior de trabalho e negligência de demandas sociais ligadas aos trabalhos exercidos por mulheres. A pandemia deixou evidente a predominância das mulheres em profissões ligadas ao cuidado, seja na área da educação, saúde e no trabalho em ambientes domésticos.

A área da educação, por exemplo, foi por muito tempo majoritariamente masculina, seja no acesso à educação, seja na profissão de professor. Uma luta política circunscrita levou à mudança desse cenário – hoje a licenciatura é dominada por mulheres, especialmente na educação infantil². No contexto da pandemia no Brasil, observou-se professoras que se desdobram para dar conta do ensino à distância, sem qualquer apoio do poder público³, retirando do próprio bolso recursos para se preparar e cumprir essa atividade, além de acumular tarefas domésticas.

Na área da saúde, mulheres são maioria nas profissões com menor status social (técnicas e auxiliares de enfermagem, enfermeiras, cuidadoras, agentes comunitárias de saúde)4, enquanto homens ainda são a maioria entre médicos, embora haja indícios de mudança desse cenário. Observou-se também que, agentes comunitárias de saúde, em sua maioria mulheres, estão realizando seus trabalhos sem receber equipamentos de proteção individual ou treinamentos específicos sobre como se proteger da contaminação pelo vírus.

Esse cenário poderia ser diferente se mais mulheres, sensíveis às questões ligadas ao gênero, estivessem presentes em instâncias de poder. As poucas que fazem parte do ambiente político apresentaram projetos de lei de apoio às mulheres, entretanto, a maioria não recebeu a devida atenção do poder público. Tal fato revela a importância da construção de pedagogias femininas (feministas) decoloniais, ocupação das mulheres nos espaços político-institucionais e maior discussão sobre o tema no espaço público para promoção de agendas que promovam a equidade de gênero.

¹De acordo com estudo da ONU Mulheres de 2019, o Brasil está em 9º lugar entre os 11 países da América Latina no que diz respeito aos direitos políticos das mulheres e paridade políticas entre homens e mulheres.

²Segundo estudo do INEP de 2004, a distribuição dos professores por gênero varia bastante segundo a disciplina e a série. A proporção de mulheres vai diminuindo gradativamente conforme a série pesquisada aumenta, mas mesmo assim continuam sendo maioria em Língua Portuguesa, enquanto em Matemática os homens são maioria na 3ª série do Ensino Médio.

 ³Fato exposto no projeto de lei da deputada estadual de Minas Gerais, Beatriz Cerqueira.

4 De acordo com pesquisa da Fiocruz em parceria com o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) realizada em 2015, 84,6% da equipe de enfermagem do Brasil é composta por mulheres.

5 De acordo com o estudo “Demografia Médica”, realizado em 2018 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), 54,4% dos médicos são homens. Entretanto, as mulheres são maioria entre os médicos mais jovens, sendo 57,4%, no grupo até 29 anos, e 53,7%, na faixa entre 30 e 34 anos.

Referências:

LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mary. (Org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997

LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Porto Editora, 2000

*Pós-doutoranda da Fiocruz/MG no campo da Saúde Coletiva. Doutora e mestre em Sociologia pela UFMG. Graduada em Ciências Biológicas (bacharelado), com formação complementar em Divulgação Científica pela mesma instituição. Atualmente suas áreas de interesse em pesquisa são: ciência e religião, gênero e saúde e controle de vetores. Email: brunah.schall@gmail.com

**Pós-doutoranda da Fiocruz/MG no campo da Saúde Coletiva. Doutora em Ciência e Cultura na História/UFMG. Mestre em Ciências pela COC – Fiocruz/RJ. Atualmente suas áreas de interesse em pesquisa são: História das Mulheres na Ciência e na Saúde, Gênero e Ciências, Mulheres do Campo, Educação em Saúde, História e Cultura Afro-brasileira, Feminismo Negro. Email: polyvalente84@gmail.com

***Pós doutoranda na FIOCRUZ – MINAS e pesquisadora do Centro de Estudos sobre Comportamento Político (CECOMP) do DCP-UFMG. Fez Residência Pós Doutoral em Desenvolvimento Social na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES (2019). É doutora (2018) e mestra (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Email: mariela.rocha@gmail.com

****Pós-Doutoranda da Fiocruz/MG no campo de Saúde Coletiva. Pesquisadora da Rede Covid-19 Humanidades. Doutora em Ciência e Cultura na História/UFMG. Mestre em História pela UFPB. Tem experiência de ensino e pesquisa em História das Ciências, História da Saúde e das Doenças; História de Programas de Cooperações Internacionais em Ciência no século XX, no Brasil e na América Latina. Email: palomaporto@gmail.com

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Elineudo Meira

 

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