Rabos e rábulas

Dalvit Greiner

 

Em 1930, no seu livro Alguma poesia, Carlos Drummond de Andrade nos alertava sobre as hierarquias. Para quem ainda não conhece o poema Política Literária, dedicado a Manuel Bandeira, aí vaí:

O poeta municipal
Discute com o poeta estadual
Qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso,
O poeta federal tira ouro do nariz

E assim vai a sociedade. Queiramos ou não, ela é feita de hierarquias e quem está no topo da cadeia alimentar não está nem aí para os queridos predados. Aliás, todo predado é querido, na medida em que nenhum predado é indigesto. Os indigestos não são predados: sua defesa é a indigestão do predador.

https://naufragodautopia.wordpress.com/category/gilmar-mendes/

Voltando bem lá atrás (coisa de pesquisador que vive fuçando as coisas), nas Cortes Portuguesas de 1821, a maior dificuldade que os deputados constituintes tiveram (e não conseguiram) foi o de submeter os juízes ao parlamento, naquele mínimo necessário imaginado por Montesquieu para o equilíbrio dos poderes. Não conseguiram. E junto com outras mazelas portuguesas, herdamos também isso: a não submissão do Poder Judiciário e da reciprocidade dos demais poderes entre si. Traduzindo na versão Gilmar Mendes: o Poder Judiciário é o cachorro que balança o rabo. Na arrogância do ministro – não consigo entender de outra forma – o rabo não representa apenas os demais componentes do poder a qual pertence o ministro, mas todo o resto da sociedade. Quando a Suprema Corte se omite em advertir, o ministro dá a crer que ela é o cachorro que balança todo o resto.

A fala do ministro é ofensiva, engraçada e triste. Por isso é arrogante. Ela não é representativa da sociedade, na medida em que o Poder Judiciário – de qualquer país, diga-se de passagem – não representa a sua população, não representa a Nação. Pela sua natureza, o Poder Judiciário é o que tem de mais conservador em qualquer lugar do mundo. Conservador no sentido mesmo de conservar a lei em sua impessoalidade. Porém, quando o sentido de conservação migra para a política, o conservador perde a impessoalidade inscrita na lei. Explico-me melhor: cabe ao Poder Judiciário cumprir e fazer cumprir a lei – boa ou ruim – não cabendo ao magistrado emitir opiniões acerca da lei, nem legislar em nome de outro poder. Portanto, o caráter conservador da lei que o Legislativo prepara está no caráter conservador dos ocupantes do Parlamento, lugar onde a sociedade se representa e lá, somente lá se deve tornar a lei menos conservadora ou mais progressista. Cabe ao Poder Judiciário apenas confirmar e executar a lei rejeitando-a naquilo que ela tem de inconstitucional por não fazer parte dos princípios da Nação.

E aqui entro numa outra questão: o silêncio dos juízes. Juízes não devem falar, pois sua ação deve ser silenciosa, meditativa, contemplativa. Pública e publicizada deve ser sua ação julgadora, pois o juiz deve satisfações à sociedade, apesar de não oferecê-las com a clareza didática necessária. O contrato do Poder Judiciário com a sociedade é o de zelar pelos direitos inerentes ao ser humano e à vida em sociedade. Este contrato inclui a defesa da sociedade contra o Estado e não o contrário. O Estado não precisa de defesas contra a sociedade, senão e apenas contra outro Estado, o que em geral, é feito pelas armas. O contrato do Poder Judiciário com a sociedade não permite aos juízes emitir opiniões sobre esta mesma sociedade que o mantém. Podem e devem exercer uma ação pedagógica sobre a sociedade, pois partimos do pressuposto que estão melhor preparados para esta ação, mas, neste caso, é melhor largar a toga e tornar-se professores, preparando novas gerações para consertar seus erros.

A superioridade de um juiz estaria em não aparecer, em não emitir opiniões, em contribuir para o bem da sociedade com a sua reclusão – não isolamento – e seu silêncio – não a sua conivência. Porém, o ministro Gilmar Mendes faz tudo ao contrário: sua vaidade não lhe permite o silêncio nem a reclusão dos juízes. Ele não quer orientar a sociedade para melhorá-la. Como cão raivoso faz questão de ladrar bem alto. É o guardião autoritário e conservador  parcial da lei. Faz questão de balançar o rabo (ou seja, quer fazer dos juízes das demais instâncias e da sociedade o que bem quer) para que todos percebam quem é o cachorro e a quem pertence o rabo.

A pergunta que se faz, nesses temposde coronelismo judiciário, é porque o ministro Gilmar Mendes – e muitos outros juízes – agem dessa forma? Concordo com SlavoyŽižek, a piada e a obscenidade é dele, mas que ilustra bem nossa situação: “A resposta é a mesma que a do velho chiste de mal gosto: por que é os cachorros lambem suas bolas (e nós, homens comuns não)? Porque eles podem. Então, vejo apenas uma saída: devemos submeter o Poder Judiciário, como os demais poderes, a um maior e melhor controle social. Caso contrário, continuaremos a ser o rabo que os rábulas balançam a seu bel prazer.

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