Presos, mortos e feridos: o Centenário da Independência em estado de sítio

Paulo Rogério M. Sily*

Aproxima-se o bicentenário da emancipação política do Brasil, a ser celebrado em 2022. Para preparar a efeméride já estão em funcionamento comissões de governo, nas esferas federal, estadual e municipal, assim como outras criadas por fundações e organizações da sociedade civil. Iniciativas que demonstram a existência de distintos projetos para preservar a tradição de celebrar a Independência como marco histórico, mas, possivelmente, com diferentes leituras da nação que se quer.

A história dessa efeméride pode servir para interrogar e problematizar as homenagens prestadas quando do centenário da nação. Quais representações do Brasil foram criadas e postas em destaque? Qual imagem do país se pretendeu afirmar e, consequentemente, o que se buscou ofuscar no primeiro centenário da independência política?

Para celebrar os cem anos da emancipação política do Brasil diversas atividades foram programadas com antecedência, sendo iniciadas a partir da criação de uma Comissão Executiva, diretamente subordinada ao Presidente da República, Epitácio Pessoa (Decreto n. 4.175, de 11 nov. 1920). Pretendia-se contemplar dois objetivos, complementares: construir uma imagem do Brasil que fosse motivo de orgulho dos brasileiros, estimulando e fortalecendo laços de nacionalidade e de pertencimento em uma população heterogênea e servir de propaganda das potencialidades nacionais e de atrativo para aqueles que, em nações estrangeiras, tivessem interesses em expandir negócios, estabelecer relações comerciais e/ou realizar investimentos no Brasil, em tempos de reconstrução da economia mundial no pós Primeira Grande-Guerra (1914 – 1919).

Dentre as atividades programadas, por exemplo, foi lançada a pedra fundamental da atual cidade de Brasília, no Planalto Central, com a intenção de transferir a capital da República, somente efetivada em 1960. Por todo o país, em diferentes estados da União, cidades foram enfeitadas com símbolos de cores nacionais em locais onde ocorreram festas cívicas, com apresentação de hinos de exaltação à pátria, tocados por bandas marciais; paradas militares; desfiles de colegiais; etc., comparticipação de parcela significativa da população.

Na capital federal – cidade do Rio de Janeiro –, além de festas populares foi inaugurado o Museu Histórico Nacional, concebido como sede da memória oficial do Brasil; instalada a Exposição Internacional do Centenário, com duração de 9 meses, tempo em que foram realizados congressos e promovidos inúmeros bailes, banquetes e recepções nos quais reuniam-se autoridades de governo, representantes oficiais de diversos países, além de empresários, intelectuais e grande parte da elite carioca.

Para os inventores desses lugares de memória – pertencentes a segmentos das elites ilustradas e ao governo – em cem anos a nação brasileira havia se tornado moderna, encontrava-se em vias de progresso e em condições de ser equiparada a países da Europa e da América do Norte considerados “civilizados”. Tal condição se devia a um povo unido e ordeiro, empenhado em construir uma nação assentada na ciência e no trabalho. Para sustentar tal representação foi preciso tentar “calar” quem não via o Brasil e sua história dessa forma e contestava a ordem oligárquica em vigor, por exemplo, anarquistas, comunistas, tenentes, modernistas, feministas atuantes por meio de movimentos sociais que poderiam lançar por terra a imagem da nação que se pretendia exibir.

Foi em meio aos preparativos para as comemorações do centenário, no dia 5 de julho de 1922, que estourou um levante militar na capital federal. Considerada a primeira ação do movimento tenentista, a Revolta dos 18 do Forte foi protagonizada por jovens oficiais do exército aquartelados no forte Copacabana, liderados pelo capitão Euclides Hermes da Fonseca e o tenente Antonio de Siqueira Campos, em protesto contra a eleição de Artur Bernardes para a presidência da República (março de 1922), as punições de militares e o fechamento do Clube Militar por decisões do então Presidente, Epitácio Pessoa.

Apesar de o movimento ter sido debelado em algumas horas pelas forças do governo, os revoltosos, em resistência, deixaram o forte e marcharam, armados, pela Avenida Atlântica, onde foram combatidos por tropas legalistas com o saldo de apenas 2 sobreviventes – Siqueira Campos e Eduardo Gomes -, presos assim como militares que apoiaram o levante. Nesse mesmo dia o Congresso Nacional aprovou, a pedido do Presidente da República, o estado de sítio no Distrito Federal e no estado do Rio de Janeiro por 30 dias (Decreto 4.549, de 5 Jul. 1922), postergado, em seguida, até o final do ano. Foi, portanto, em estado de exceção, com liberdades individuais e direitos constitucionais suspensos que ocorreram as comemorações do centenário da nação.

Ao considerar que memória e poder conformam a ação política de determinados agentes sociais ao selecionar o que se deve lembrar e tomando como referência experiências anteriores de comemorações do 7 de setembro, cabe a nós, cidadãos/ãs brasileiros/as, decidirmos sobre a nação que queremos pôr em evidência não apenas na efeméride em 2022, promovendo desde já uma reflexão sobre os/as protagonistas da história nacional; as memórias a serem (re)lembradas e narradas, inclusive as que envolvem pessoas que foram presas, mortas e feridas no exercício do legítimo direito de se manifestar.

*Professor aposentado pelo Colégio Pedro II. Integrante do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPHE/UERJ). E mail: prsily@yahoo.com.br


Imagem de destaque: Correio da Manhã, 6 de Juçlho de 1922. Fonte: Biblioteca Nacional

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *