Posturas intelectuais e a democracia no Brasil

Marlos Bezerra de Mello

Os dois últimos editoriais do Jornal “Pensar a Educação em Pauta”, do dia 23 de março e de 1º de abril, refletiram o fato de instituições que representam os cientistas e intelectuais no Brasil terem vindo a público manifestar uma posição pela preservação da democracia e das políticas públicas desenvolvidas pelo governo federal. A defesa da democracia pode ser a garantia legítima para que as pessoas possam continuar se manifestando, se expressando, criticando, protestando, se opondo e, principalmente, desejando participar das decisões para e pelo país. Somente assim é possível persistir em direção ao círculo virtuoso da democracia brasileira, isto é, do direito próprio e/ou coletivo das pessoas poderem exigir os seus direitos, a base para a qualidade de vida.

Não faz muito tempo e também não são todos, mas uma boa parte dos intelectuais e cientistas se apartaram e/ou se afastaram dos debates políticos e das discussões no e sobre o espaço público no Brasil. Tais especialistas foram convencidos, aparentemente, por uma necessidade de “independência” perante a sociedade. Resignando seus pensamentos e suas próprias responsabilidades, esses personagens passaram a falar exclusivamente para si mesmos, no interior de instituições, por meio de publicações em periódicos especializados e com poucas vozes, geralmente setorizadas e até mal vistas pelos seus pares, voltadas para o cotidiano das pessoas. Nesse processo de isolamento, muitos pensadores passaram a se manifestar apenas através de notas e resoluções editadas por organizações representativas e notadamente quando convidadas a dar pareceres sobre determinados assuntos.

Na história recente do Brasil, os educadores, os intelectuais e os cientistas brasileiros e estrangeiros que viviam no país entre os anos de 1920 e 1960 foram decisivos ao participar abertamente dos debates políticos, sobretudo, contribuindo para a elaboração e operacionalização de Leis e Emendas Constitucionais significativas para a implementação de politicas públicas e educacionais para o país. Tratava-se de um período em que o discurso educacional se articulava intimamente ao discurso político, isto é, havia uma convicção tácita de que apenas os educadores e os estudiosos da educação sabiam o que era melhor para a escolarização da população brasileira. Defendia-se que para a educação nem mesmo o céu era o limite, pois nela estava depositado o comprometimento da nação com a construção do destino coletivo do país. E, para efeito desse processo de edificação cultural e educacional, os educadores, intelectuais e cientistas deveriam exercer estrategicamente o papel de arquitetos para o futuro do Brasil.

Em 1964, com o cerceamento da democracia brasileira e a implantação do regime civil-militar no governo, os debates sobre os rumos políticos do país, especificamente no que se refere à educação, ganharam novos agentes e direcionamentos. Nesse cenário, houve educadores, intelectuais e cientistas perseguidos, livros proibidos de serem publicados e comercializados, escolas fechadas e uma associação explícita entre a escolarização e a doutrina da segurança nacional proposta pelos militares.

Passados mais de 10 anos ininterruptos de governos no Brasil sem a participação da população na eleição do presidente da República, já no final da década de 1970, a ditadura civil-militar no país começava a dar sinais para a abertura política. A Lei da Anistia promulgada em 28 de agosto de 1979 permitiu que várias personalidades que estavam exiladas pudessem retornar ao país. Dentre elas estavam educadores, políticos, intelectuais, artistas, cientistas etc. que procuraram retomar seus projetos e ideias democráticas para a esfera pública brasileira.

É nesse cenário de abertura para a democracia e de retomada de antigas ideias e projetos paralisados pela ditadura civil-militar que surge um novo elemento dentro da discussão política e educacional, um fenômeno que, no caso, pode ser transformado em questão para os historiadores da educação e para o circuito histórico brasileiro dos anos de 1980. Isto é, o rompimento do acordo tácito vigente até os anos de 1960, antes do apagar as luzes democráticas pelo regime militar, o de que, até então, eram os intelectuais, cientistas e educadores que sabiam realmente o que era melhor para a escolarização da população do Brasil.

Ocorre que durante os mais de 20 anos de governos militares se constituiu uma nova geração de educadores, intelectuais e cientistas. No surgimento desses novos personagens no cenário educacional brasileiro houve o reconhecimento dos méritos e dos esforços dos antigos estudiosos da educação, porém também apareceu uma dúvida sobre os seus pensamentos, a de que os antigos intelectuais haviam sido severamente preconceituosos ao acreditar que sabiam realmente o que era melhor para a escolarização da população do país. Portanto, a partir desse questionamento, se insurgiu uma ruptura que culminou com o deslocamento do lugar dos intelectuais na sociedade, pois é bom lembrar que antes eles se apresentavam como os enunciadores do futuro, os arquitetos para a posteridade, e agora, a nova geração, passava a tentar exercer outro papel: o de tradutores das vozes dos trabalhadores e/ou apoiadores teóricos para causas específicas dos operários.

Formou-se assim um novo pacto, um compromisso que se estende até hoje com a presunção de verdade da classe trabalhadora, com a verdade dos sindicatos que representam os trabalhadores, o que aparentemente não representa mal algum, mas que faz suscitar uma pergunta diante dessa postura intelectual: os trabalhadores realmente sabem tudo? Os intelectuais devem assinar um cheque em branco em nome da verdade dos sindicatos? E quando ocorre um alinhamento entre os representantes dos trabalhadores e os partidos políticos, qual deve ser a postura dos intelectuais, educadores e cientistas?

O que se percebe é que historicamente a nova geração de intelectuais brasileiros se constituiu em meio a ditadura civil-militar e que naquele momento histórico assumir uma posição junto aos setores que lutavam pelo fim dos governos militares parecia ser a melhor alternativa. Pode-se dizer, contudo, que desses movimentos a favor da democracia surgiram novamente os partidos políticos e com eles mais promessas em relação à educação. Desse modo, vários educadores, intelectuais e cientistas foram convidados para compor as novas agremiações partidárias que certamente contribuíram para as grandes conquistas e os avanços que a escolarização pública alcançou no Brasil. No entanto, nos dias de hoje, a articulação entre os intelectuais e os representantes dos trabalhadores continua existindo? Será que as vozes dos sindicatos continuam ecoando e sendo traduzidas pelos representantes intelectuais? E, sobretudo, será que não está surgindo uma nova geração de educadores, intelectuais e cientistas oriundos desses quase 30 anos de democracia ininterrupta no Brasil procurando apontar para outra discussão sobre a escolarização e a esfera pública e, mais do que isso, tentando deixar um pouco de lado o debate sobre o compromisso partidário, ou seja, colocando a educação novamente na ordem da política e não somente dos políticos?

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