Por que precisamos ler mais livros escritos por mulheres?

Evelyn Orlando

Recentemente, li o livro da escritora russa Svetlana Aleksiévitch, A Guerra não tem rosto de mulher, e me dei conta de como somos reféns da história única, controlada pelo mercado editorial. A autora narra a dificuldade de publicar sua obra, por dois anos recebendo recusas das editoras, que as justificavam como não sendo aquela “a guerra certa a ser mostrada”.

Na Rússia, a história da Guerra foi substituída pela história da Vitória. Das inquietações sobre a legitimidade de escrever mais um livro sobre a guerra, quando já existiam tantos, a autora se confronta com o fato de que tudo que se sabia a respeito da guerra era mediado por uma voz masculina, que veiculava representações e sensações masculinas da guerra, internalizadas e reproduzidas mesmo por quem tinha histórias completamente diferentes da guerra, como as mulheres que haviam ido ao front. Essas mulheres não apenas se calavam sobre a guerra como também, ao serem interrogadas, reproduziam a narrativa canônica masculina. Mas elas tinham suas próprias histórias de uma guerra que se desconhecia.

O livro de Svetlana nos provoca a pensar nos mecanismos de produção da história única, como nos chama a atenção a escritora nigeriana Chimamanda Adichie. Ela observa que nossas histórias também são definidas por estruturas de poder, que criam estereótipos e “verdades”. Quando mostramos uma só visão sobre um povo, repetidamente, é aquilo que ele se tornará aos olhos de todos.

Fugir da história única, da narrativa controlada, das representações masculinas, e em larga medida de homens brancos, significa assumir, ainda que parcialmente, o controle do que consumimos intelectualmente, indo além do que é produzido apenas – ou majoritariamente – por quem está no poder. Se o mundo é diverso – e ele é – , é preciso outros olhares, outras lentes para ampliarmos nossa compreensão sobre ele.

Concentrar nossas leituras em autores masculinos, além de nos fazer perder a perspectiva de metade da população, nos leva a assumir uma visão masculina do mundo, inclusive no que tange às mulheres e ao “feminino”. Claro que estamos diante de uma questão complexa e os mecanismos de produção dessas representações são muito mais sutis do que pensamos. Não é por acaso que escolhemos as leituras que fazemos, não é por acaso que lemos mais livros de autoria masculina, assim como não é por acaso que repetimos suas narrativas, inclusive contra nós mesmas. Por trás do que escolhemos ler, existe toda uma história de detenção do poder pelos homens. Não só homens, aliás. Uma pesquisa produzida na Universidade de Brasília sobre Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro indica o perfil do romancista brasileiro publicado pelas grandes editoras: “homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Seus narradores, protagonistas e coadjuvantes são em sua maioria homens, também brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades”.

O curioso é que estamos tão acostumadas a ter homens falando por nós que nem percebemos que muitas de suas narrativas não apenas não nos representam, como o universo criado por eles pouco toca no mundo tal como o percebemos, vivemos ou idealizamos. Ainda assim, incorporamos seus discursos sobre nós e os reproduzimos.

Mas, pensando junto com a autora nigeriana Chimamanda,“histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade perdida”, também podem nos fazer reconhecer em outras vozes, percebendo tantos outros modos possíveis de existir. Ler mulheres pode ser uma forma de enxergar outras perspectivas, de reconhecer a legitimidade de outros sujeitos e suas histórias, reparando a ideia de autoridade relacionada ao gênero, à etnia e à classe social.

Por mais que estejamos avançando nessa direção e alguns movimentos interessantes venham sendo criados nesse sentido – como o Leia Mulheres, Mulherio das Letras, Mulheres que Escrevem, dentre tantos outros – quantos livros escritos por mulheres lemos neste último ano? Ler mulheres ainda está longe de ser um hábito comum, porque ainda não rompemos com os cânones que nos controlam, ainda temos sérias dificuldades de considerar legítimos outros discursos. É por isso que precisamos ler mais livros escritos por mulheres, sejam elas brancas, negras, ocidentais, orientais, africanas, religiosas ou não. Há, aí, um mundo inteiro escondido de nós.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *