Podem os sujeitos da EJA falar? A EJA e a escrita de si

 Maria Marlete de Souza¹

A literatura é um campo específico e importante que possibilita aos sujeitos considerados “subalternos” registrar, através da escrita, as histórias reais de suas vivências. Ao socializar suas experiências de vida, os sujeitos da EJA expõem os graves problemas sociais da nossa sociedade, assim como a autora e escritora negra, Carolina Maria de Jesus, que guardava sua fala no papel para, um dia, mostrá-la aos que vinham de fora na obra Quarto de Despejo – Diário de uma favelada. 

“Pode o subalterno falar?” Parafraseando Spivak (2010) podem os sujeitos da EJA falar?  É uma discussão que inclui as relações  de poder, a exclusão social, as questões raciais e o preconceito contra as chamadas “minorias”. Para a autora, a condição de subalterno está ligada à estrutura de poder e à opressão mantida pela classe dominante. Spivak afirma que falar pelo outro e construir um discurso de resistência é reproduzir as estruturas de poder e opressão, silenciando o subalterno e retirando-lhe o poder de fala e o espaço onde possa ser ouvido. 

A conscientização da opressão é o fator primordial para a busca da liberdade. A opressão que passa de geração para geração vai se enfraquecendo, pois cada geração que transmite a conscientização para a geração seguinte, vai diluindo o caráter opressivo. A educação é um dos fatores que dá possibilidade ao sujeito de libertar-se, trazendo possibilidade de mudança e oportunidade de realizar-se e libertar-se da opressão. “Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação?” (FREIRE, 1979, p. 32).  

Escrever a autobiografia, falar de si, é uma chance de, estando no presente, voltar ao passado e trazê-lo, via memória, ao presente. A ação de escrever a história lembrada e narrada constitui outro momento do processo de mostrar seu “eu”, composto por passado e presente. Esse “eu” que agora narra não está isolado, isento do seu passado; pelo contrário, ele é um reflexo daquele “eu” que outrora possibilitou a construção da narrativa. Na escrita de si, o personagem-autor se transforma em outro sujeito que olha para trás, projeta o “eu” no passado e volta ao presente. Os relatos produzidos são clarões de uma luz de lanterna apontada para o tempo passado. A lanterna, metaforicamente, reflete e apresenta um retrato da vida vivida e revivida por meio de textos autobiográficos. Apontar a lanterna para o passado não é uma tarefa muito difícil. Difícil mesmo é acompanhar o trajeto da luz e se deter em cada clarão, cujas marcas foram redesenhadas pelo tempo.  

Outro aspecto abordado que atravessa a história de vida e  acompanha os sujeitos EJA é a memória. Não se trata de uma memória histórica, mas sim, autobiográfica. Qual é a função da memória nos  textos construídos pelos  por estes sujeitos? Não são  pessoas que chegaram a certa idade e que passaram para as novas gerações as lembranças vividas ou a memória da família. Trata-se de sujeitos que querem dar visibilidade à sua história de vida, suas trajetórias iniciadas desde a infância até o momento presente, através das narrativas, e desejam ressignificá-las. 

Quando o sujeito conta sua história de vida, expõe seu testemunho subjetivo; os fatos aparecem com menor nitidez, dado o tempo decorrido até o presente momento. Nesse espaço de tempo, muito se perde e a visão dos fatos é  interpretada sob diferentes pontos de vista, levando em consideração o tempo atual e a vivência de mundo do sujeito alfabetizado no momento de narrar suas memórias. 

Paulo Freire, em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, ao falar sobre a importância da alfabetização, declara que seu ponto mais exato seja, talvez, “aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se“. Assim, na medida em que o sujeito se vê como testemunha de sua própria história, terá uma consciência reflexiva e se tornará responsável por esse fazer histórico.  E, mais ainda, se tornará mais consciente dos seus direitos para “aprender a dizer a sua própria palavra, seu mundo, sua história na qual se sabe autor”. Essa liberdade, que segundo Freire “que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz”. (FREIRE, 1979, p. 35). 

É interessante e vale a pena questionar aqui: O que fazer com a mensagem dos textos na escrita de si produzida  pelos sujeitos da EJA? O que fazer com essas escritas? Elas não podem representar somente uma história autobiográfica no papel. Elas representam depoimentos vivos, originais e espontâneos de trajetórias de pessoas que tiveram seus direitos negados e permaneceram em silêncio por muitos anos, ao mesmo tempo em que compartilham a resistência e a reexistência dos educandos e educandas da EJA. 

 

1Especialista em Gestão das Instituições Federais de Educação Superior (FaE/UFMG), Mestra em Educação (FaE/UFMG), Servidora pública (UFMG)

 


Imagem de destaque: Andre Borges / Agência Brasília

 

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