Perspectivações em Literatura e Cinema

Rafael Muller

Um dos elementos mais basilares para uma boa aprendizagem é a capacidade autorreflexiva de monitorar o próprio processo de aprendizagem. Essa consciência de si – como aprendo melhor – é um exercício constante, desafiador, mas muito produtivo. Além disso, do ponto de vista linguageiro, pensamento e linguagem estão numa relação dialética importante, de modo que compreender as estruturas linguísticas do pensar é um passo para a autoaprendizagem. Saber que significantes e significados estão em relação arbitrária e como organizamo-los é um primeiro passo.

O tema do artigo de hoje, entretanto, é Cinema, Literatura e Educação. O caminho mais tradicional, talvez, seria o de se iniciar este texto comparando literatura e cinema em suas aproximações e afastamentos, recursos dos quais cada um dispõe. Façamos isso também.

Literatura e Cinema são duas artes que se interpelam de diversas formas. As mais evidentes, talvez, sejam as adaptações de peças literárias para peças cinematográficas: livros que viram filmes. Se a literatura tem por base, essencialmente, a palavra escrita; o Cinema vale-se também de recursos imagéticos, velocidade e perspectivação (diferenciando-se, assim, do Teatro). Isso não o torna superior, mas diverso, posto que a verticalização no uso das linguagens resulta em operações e efeitos igualmente relevantes. 

Essas diferenciações entre as categorias Literatura e Cinema são, entretanto, arbitrárias. Delimitei-as conforme minhas crenças do que é Literatura e do que é Cinema. A extensão de cada significado e a categorização de uma peça como literária ou não será sempre objeto de debate teórico. É aqui que se inicia nosso exercício de pensar a autoaprendizagem a partir dessas categorias: por que nos contentamos tanto com o exercício de categorização, mas vemos com desconfiança a descategorização? 

Veja-se: uma charge seria inserida mais facilmente no campo das literaturas do que do cinema. Um compêndio de charges, também. Mas se são similares e apresentadas em sequência rápida, criando movimento em frames por segundo (FPS), são cinema. Qual o limite objetivo que separa, portanto, um compêndio de textos com recursos imagéticos sequenciais do cinema? Quantos FPS? Naturalmente, não há resposta.

Entender que os limites entre as categorias organizadas pelos seres humanos para sistematizar o seu pensamento são arbitrárias – um exercício de descategorização – é o principal objetivo deste artigo e a proposta desconstrucionista de Derrida, por exemplo, na filosofia. Quem define as categorias é quem detém o poder simbólico para tanto, segundo Bourdieu, na sociologia. Todas essas teorias contribuem também, portanto, para um exercício de monitoramento da autoaprendizagem: compreender que as coisas não são simplesmente o que são, mas são todas objetos em uma rede de relações arbitrárias definidas. Esse é um passo interessante de autonomia reflexiva. De pensar por si. É nesse espaço de compreender que os objetos do mundo podem ser chamados por muitos nomes diferentes, e que seus limites são arbitrários, em que se inserem as metateorias críticas. O pensamento crítico é um pensamento [do] limítrofe.

Do ponto de vista epistemológico, exige-se uma postura cética. Perguntar, por exemplo: por que o que estou vendo/lendo é, necessariamente, Cinema/Literatura? O exercício comparado deve antes expor limites do que os objetos comparados propriamente ditos: uma anotação de compras a fazer no supermercado de um escritor famoso compõe ou não a sua obra? um registro fílmico da vida pessoal de um cineasta fará igualmente parte de sua obra ou não? Talvez, sob o crivo do crítico, tais peças possam ser consideradas relevantes para a reconstrução da vida-e-obra do escritor ou cineasta, mas dificilmente seriam aceitas como obras-em-si-mesmas.

Tais comparações escancaram limites e são um exercício teórico igualmente importante para o debate em Teoria da Literatura e Teoria do Cinema. Suas repercussões, entretanto, não se limitam a listas de mercado: em exemplo mais crível, cartilhas de guerrilha em um espaço-território de luta por liberdade comporiam o corpo-literário de uma época? Naturalmente, os dominadores hegemônicos proclamariam que não; os lutadores pela liberdade, sim. Essa estrutura de luta por poder simbólico é um objeto de pesquisa aplicada interessante.

O exercício teórico da “lista de mercado”, assim como muitos debates considerados inúteis em Literatura e Cinema – em especial por pessoas leigas, mas também por alguns especialistas que se dizem mais “práticos” -, têm, portanto, sua importância: principalmente pedagógica, no treinamento do raciocínio humano para a categorização e descategorização, permitindo refletir sobre a realidade de modo mais crítico.

Em última instância, “O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale” (FEYERABEND, 1977, p. 27).

Para saber mais
FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Ed. UNESP, 1977.


Imagem de destaque: Pxfuel

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