Pequenos apontamentos sobre a banalidade do mal

Joaquim Ramos

Sandro Santos

Por que mente o homem?

mente mente mente

desesperadamente?

Por que não se cala,

se a mentira fala

em tudo que sente?

Carlos Drummond de Andrade

Antologia Poética, 1982

Estamos em uma época de extremismos. A falta de respeito ao próximo, em especial, a falta de respeito àquelas minorias historicamente fragilizadas e marginalizadas (mulheres, crianças, idosos, índios, pessoas LGBTs, pobres, negros, enfim) acompanhada do desejo umbilical, dos tidos mais “fortes”, de nunca ceder espaços de poder, tem contribuído para a derrocada do lado humano de nós, animais. De modo paulatino, nem por isso imperceptível, esse fato contribui para consubstanciar uma espécie de extinção do jeito mais tolerante e humano de ser e estar no mundo. Assim, nos encaixamos como nunca nesta categoria de bichos: odiamos por muito pouco, ofendemos por menos ainda, destruímos o outro como se não tratasse de gente, imprimimos o nosso desejo à força e quando temos algum tipo de poder, não abrimos mão de usá-lo para aniquilar os mais fracos, matamos o lado racional de nós mesmos para então, entrarmos na categoria de “deuses”, acima do bem e do mal! Assim, como “deuses do Olimpo”, estufamos o peito, erguemos os braços para comemorar, na bandeirada final, nossas pequenas e microscópias vitórias alcançadas por meio do ódio e da repulsa à alteridade.

Drummond interroga-nos e nos instiga a pensar sobre nosso lado humano: por que mentimos desesperadamente? Ele não responde nada, mas de maneira muito sábia, finaliza esse poema com outras indagações que nos induzem à reflexão: “E sabe o demônio? Como quer o homem Ser destino, fonte? Que milagre é o homem? Que sonho, que sombra? Mas existe o homem?” Nem sempre queremos pensar sobre nossa condição humana frente ao diabólico e ao divino. Em nós, cabem os dois. Entretanto, nestes tempos sombrios temos optado por atacar, por maltratar, por escorraçar, por dilapidar do outro a própria essência, por sermos soberanos em nossa microfísica de saber e poder, por ver, de maneira sórdida, o sofrimento alheio. Desse modo, Levamos ao extremo a máxima de Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Depois, quando é possível, vamos para os nossos templos adorar outros deuses! E acreditamos, por fim, que teremos tranquilidade no sono eterno porque somos bons, somos filhos de um Deus verdadeiro e apenas praticamos o que nos mandam executar, apenas cumprimos o que consta nos scripts. Assim, em bem menor escala e com muito menos poder, atuamos da mesma maneira que Adolf Eichmann, tal como Hannah Arendt (1999) conseguiu perceber em “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”3. Obra essa que os portadores de pequenos poderes deveriam ler para tentar compreender como a engrenagem do poder (usada para diminuir direitos) os engendram a tornarem-se arautos de algo que eles próprios não conseguem ou não querem enxergar.

Temos acompanhado bem de perto algumas destas grandes e pequenas maldades e bizarrices. Pessoas que sentem-se incomodadas ao ter que lidar com as diferenças dentro do Estado Democrático de Direito. Em seus pensamentos: “se é tão diferente de mim, vou tirar-lhe o que foi conquistado de maneira democrática e no voto”. Não apenas em nível nacional, mas também aqui, entre nós, em nosso Estado, em nosso Município, em nossas comunidades, em nossas escolas e até dentro de nossas casas, há a ocorrência de posição do tipo: “tudo o que é diferente precisa ser extirpado… só é validado e ratificado os que pensam iguais a mim”. Nas palavras de outro poeta “é que narciso acha feio o que não é espelho”. E o mundo, desse jeito, vai tomando forma. Em muitos casos, são pessoas que não admitem a própria derrota e querem, por forças escusas, impedir o sucesso alheio ou tomar de assalto o que o outro conquistou no exercício lícito da democracia. Isso não ocorre apenas em nível nacional, ocorre também nas relações micros sociais, incluindo, claro, as relações estabelecidas no interior de nossas escolas e de nossas secretarias de educação.

Nas palavras do filósofo Michel Foucault4 (1979), “há uma rede de poderes moleculares que se expande por toda a sociedade”. Há uma rede de pessoas que se julgam acima do bem e do mal e por terem recebido de alguém, gratuitamente, por vezes, sem mérito, alguma forma de “poder”, são capazes de reprimir, disciplinar e normatizar e/ou “mandar às favas” tudo aquilo que não é espelho. Entretanto, conforme nos ensina o mesmo filósofo, “nem sempre o poder é total, nem o saber é unilateral: onde há poder e saber, há resistência”. Isso não é pouco consolador e, como bem sabemos, é exatamente assim que funciona a vida cotidiana. E por ser cíclica, essa mesma cotidianidade, com as devidas intervenções necessárias, toma outros rumos… outras maneiras de ser… tornando-se mais amena e afeita à vontade da maioria ou, como querem alguns, pode retomar, via de regra, em forma de regime de exceção em que o saber e o poder estarão marcadamente concentrados nas pessoas iluminadas e escolhidas. Do jeito exato como desejam alguns (basta acessar a internet e ver os cartazes reivindicando a volta da ditadura militar no Brasil) e como já ocorre em algumas esferas públicas da macro e da micro política brasileira.

Nas micro relações vivenciadas nos diversos territórios escolares da cidade de Belo Horizonte, mais de duas dezenas de instituições escolares apresentam hoje, conforme informe da própria Secretaria Municipal de Educação (SMED), perfil de escolas que devem passar por intervenções do poder público. Isso quer dizer que os diretores eleitos democraticamente são colocados em xeque e uma comissão de acompanhamento passa a monitorar as ações desses sujeitos. Detectada a “má” gestão, instaura-se um processo, apura-se as irregularidades, convoca-se pessoas – muitas apontadas pelo próprio poder executivo e dá-se o veredicto final. Por vezes, dada a “inabilidade” desse diretor, em seu lugar é indicado um “interventor”, pessoa essa escolhida pela própria Secretaria Municipal de Educação. Ignora-se o processo democrático e consolida a retirada daquele diretor eleito pela comunidade escolar. Esta investida pode até não nos assombrar, mas a “incapacidade” dos dirigentes eleitos tem sido tamanha que a Secretaria de Educação criou um setor encarregado da “Crise da Gestão Escolar”. E as escolas, tantas vezes por falta de suporte de outros setores da gestão pública, tornam-se territórios ocupados por interventores.

A escola não está descolada de outras instituições e nem surge em um vácuo como que em passe de mágica. Na atualidade, ela também enquadra-se em um contexto nacional de quebra do respeito à ordem social e à própria democracia. Se temos hoje a ameaça concreta por parte de pessoas inescrupulosas de retirar a qualquer custo a Presidenta Dilma, muito mais fácil é depor um diretor de escola. Embora desconfiemos dessa cenário nacional e também do que ocorre no município, parece-nos que essa “Crise da gestão escolar” atinge seu ápice em um momento de “oportunismos” para minar a gestão democrática. Duas perguntas precisam ser feitas e merecem respostas: será que trata-se de uma mera crise da gestão escolar ou, assim como em nível nacional, é uma crise da gestão dos processos democráticos? Não será esse o início de uma imposição, reflexo da conjuntura nacional, que recai em nossas instituições escolares? São interrogações que nos fazem refletir sobre “perigos” eminentes.

Para exemplificar, a Escola Municipal Dinorah Magalhães Fabri, situada na região do Barreiro, enquadra-se neste acompanhamento da gestão. Após mais de 01 (um) ano do pleito eleitoral, ainda pairava na instituição um clima de disputa entre as duas chapas. A direção eleita assumiu, entretanto, a gerência de educação alega ter recebido uma infinidade de denúncias anônimas envolvendo a diretora e a vice-diretora. Ainda em função de disputas, a escola se transformou em uma verdadeira “bomba relógio” – a ponto de tal situação afetar as práticas pedagógicas vivenciadas por professores/as, alunos/as e comunidade. Resultado: dentro e fora da escola, confusão de toda ordem. Nas palavras da gerente de educação do Barreiro, “a direção da escola estava lidando cotidianamente com sabotadores”.

Neste clima e, na tentativa de minimizar o desgaste, foi proposto um termo de ajustamento da gestão (TAG) que, por incompetência da própria administração não foi sequer apresentado à comunidade escolar. Tal termo envolvia a própria escola, a gerência de educação e a Secretaria Municipal de Educação (SMED). Muitas ações desse termo (que nunca foi assinado) foram cumpridas pela escola, no entanto, a SMED e a gerência de educação não conseguiram cumprir a parte inteira do acordo.

Passados alguns meses, ainda em um clima de tensão, a SMED foi até a escola para conversar com os professores (como se apenas eles fizessem a engrenagem funcionar) e, dentre outras ações, determinou-se a retirada de uma comissão de acompanhamento interno, envolvendo professores, auxiliares de serviço gerais, pais, alunos e comunidade. Tal comissão foi referendada em assembleia escolar.

No início de 2016, já com a escola funcionando de maneira mais tranquila, a direção recebeu, de modo extemporâneo, um comunicado sobre uma possível intervenção da SMED. Entre muitos professores, auxiliares de serviço, lideranças comunitárias e alunos – em sua grande maioria oriundos das turmas de educação de jovens e adultos (EJA) – não há acordo com esta proposta encaminhada pela Secretaria. Não se trata de direção inábil ou corrupta, mas de disputas que no campo democrático e com o auxílio de outras instâncias (SMED e GERED) seria possível resolver de modo salutar, sem desgastes e sem necessariamente precisar colocar em xeque a gestão democrática – conquista tão cara para os trabalhadores e fator importante para a autonomia de cada unidade escolar.

Desta maneira, o que a comunidade escolar almeja é transparência na apuração dos fatos e que os “sabotadores” – termo utilizado pela gerente de educação do Barreiro – tenham também o tratamento adequado por parte da Secretária Municipal de Educação e, se efetivamente, essa direção atual e/ou qualquer outra se enquadra em inaptidão para o exercício da função, sejam apresentados para a comunidade escolar os fatos concretos desse imbróglio e que essa mesma comunidade possa contribuir para a resolução dos problemas. Os atores que da escola participam não podem calar diante de injustiça e de irresponsabilidade de ninguém. Assim, invertendo a lógica do discurso: idosos, adultos, jovens e crianças (todos da comunidade escolar) precisam ser respeitados e que os “maus assombros” da administração pública, seja nacional ou local e até, em última instância, os fatos negativos que ocorrem no interior de nossas escolas públicas, possam ser explicitados para ratificar o estado democrático de direitos. Desse modo, todos os envolvidos direta ou indiretamente devem participar efetivamente de atos para a desbanalização do mal que teima em assolar a democracia. Só assim, estaremos lutando para inibir os extremistas que teimam em habitar entre nós. 

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