Outra pandemia

Gustavo Silva Neves

São tempos sombrios, não há como negar. Nosso mundo jamais enfrentou ameaça maior do que a que enfrenta hoje. Mas agora digo aos nossos cidadãos: Nós, sempre os teus servos, continuaremos a defender sua liberdade, a repelir as forças do mal! O Ministério … continua … forte! (…)

A passagem anterior, poderia muito bem,tratar-se de um pronunciamento oficial proferido por algum político brasileiro. Dos quais, nos acostumamos a ver e a ouvir,os mesmos que dizem defender as instituições (frequentemente atacadas pelo próprio governo). Mas, o trecho que abre essa nossa conversa, foi extraído da literatura juvenil. Trata-se do sétimo livro da saga escrita por J. K. Rowling que, no Brasil, ficou conhecido como “Harry Potter e as Relíquias da Morte”. Sei que escrevo para prováveis leitores de Machado de Assis e José de Alencar, mas peço, não torçam o nariz para a literatura juvenil contemporânea. O estrondoso sucesso do jovem bruxo, refletido em livros, filmes, e uma completa gama de produtos licenciados, representa bem mais do que o lucrativo fruto de obra estrangeira, reflete uma marca do nosso tempo: Nossos jovens, carecem de heróis!

Não dos heróis disfarçados. É aceitável, (embora não obrigatório) que possuam poderes especiais. Contudo, nossos educandos buscam por personagens cuja maior virtude seja a capacidade de permanecerem fortes em meio às desventuras e dissabores que a vida constantemente impõe. Afinal de contas, são mesmo tempos sombrios estes que estamos vivendo! Não, antes que os amigos leitores concordem com acenos positivos de cabeça, adianto que não estou me referindo ao isolamento social promovido pela pandemia do novo Coronavírus. Sim. A Covid-19, é uma doença perigosa e demanda mesmo, todos os difíceis cuidados.

Mas, a pandemia a qual me refiro é anterior, (talvez mais severa) e certamente muito mais perigosa. Vivemos uma pandemia de incertezas, de inquietação. Zygmunt Bauman, filósofo e escritor polonês, se debruçou a entender este processo. Publicou diversas obras abordando este tema de maneira tão intensa que, nem mesmo o jovem bruxo que tratamos no início da conversa, poderia imaginar. Bauman, chamou este movimento de “mundo líquido” e desenhou de maneira detalhada diversos pontos de fragilidade a que estamos submetidos em meio ao verdadeiro tsunami de imagens e títulos que alarmam, mas pouco significam. Porém, mesmo os termos cunhados pelo filósofo, já sofrem o desgaste do uso constante.

As construções imagéticas, perfeitamente pensadas, cuidadas e desenhadas, saíram das telas da tv e ganharam o mundo exterior. Nossas casas ficaram mais bonitas, milimetricamente decoradas, ostentando seus móveis planejados, repletos de nichos e altares para receberem o Deus do nosso século, o modem de wi-fi. Nossas fotografias amadoras e raras, limitadas às ocasiões especiais (aniversários e natal em família), deram lugar às fotos cotidianas, porém, minunciosamente tratadas. São diversas composições de cores. Nossos objetos e nós mesmos, estamos muito mais bem cuidados! Nunca tantas pessoas estiveram “de dieta”, preocupadas com a alimentação, com o corpo, dispostas a se submeterem a variados procedimentos estéticos, com direito à “harmonização facial”, sorrisos fortuitos (devidamente clarificados) e incessantes registros dos “momentos inesquecíveis”. Vale tudo pelo “like”.

O mundo conectado, repleto de informações instantâneas, sugere que a intimidade é algo dispensável. Não podemos mais ser introspectivos, tímidos, não podemos silenciar. Há um senso comum de que precisamos estar (e principalmente permanecer) em evidência. Conviver nesta realidade urgente, é algo muito difícil. É preciso parecer perfeito o tempo todo, mais do que isso, é preciso aparecer! Por outro lado, coloquemo-nos no lugar dos nossos alunos. A velocidade imposta e a obrigatoriedade pela perfeição, tira-lhes a maior característica da juventude: A experimentação do erro, do desacerto e do engano, que causam frustração, mas nos ensinam a resistir!

E é aí que entram os heróis da literatura. Heróis imperfeitos, que sentem raiva, medo, dor, que falham, que choram e precisam se reinventar no dia seguinte, para continuarem a sua saga. A leitura é duas vezes libertadora! Primeiro, porque permite a fuga. Quem lê, se desliga desse mundo e pode (ao menos enquanto a leitura durar), voltar ao tempo normal, respirar, refletir, descansar. Segundo, a literatura quebra essa obrigatoriedade da perfeição, pois, assim como os personagens, podemos parar, sofrer, reinventar. Precisamos de cura. Não apenas os nossos jovens, todos nós. Essa pandemia é mesmo gravíssima. Por sorte, ao menos neste caso, já temos uma vacina.

Aqui, chamamos de livros!

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt.  Modernidade Líquida. Traduzido por Plínio Dentzien. Jorge Zahar Editor: RJ, 2000.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos.Traduzido por Carlos Alberto Medeiros. Jorge Zahar Editor: RJ, 2003.

ROWLING, J. K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Editora Rocco: RJ,2007


Imagem de destaque: Aaron Burden / Unsplash

 

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