Otavio Frias Filho (1957-2018)

Alexandre Fernandez Vaz

 

Na minha infância, cada vez que com meus pais e meu irmão eu viajava a São Paulo, voltava para casa com um calhamaço de exemplares da Folhinha de São Paulo, suplemento infantil da Folha de São Paulo, que meus avós paternos arquivavam, todos os sábados, à espera dos netos de Florianópolis. O suplemento era lido com gosto e ainda ajudava nas tarefas escolares. Entre o fim da infância e os primeiros anos de mocidade, descobri o restante do jornal.

Em casa, tínhamos O Estado, o então septuagenário diário local, e O Estado de São Paulo, que meu pai comprava todos os dias. A Folha eu lia nas visitas aos avós, até que, ainda no ensino médio, passei a adquirir esporádicos exemplares, com frequência maior aos domingos, quando saía a Folhetim. O jornal costumava chegar à Ilha de Santa Catarina no início da tarde. O suplemento cultural, ao qual devo uma parte de minha fragmentária formação, logo sairia às sextas e depois aos sábados. Foi na Folha que soube com mais pormenores o que acontecera no ABC ao final dos anos 1980, foi ali que li pela primeira vez artigos sobre Claude Lefort, Michel Foucault, Martin Heidegger, Milan Kundera. Em tempos de final de ditadura, suas páginas de opinião e o caderno Ilustrada ajudavam a pautar os debates com colegas e professores.

Naqueles anos e nos seguintes, ao mesmo tempo em que os amigos e eu líamos os artigos semanais de Marilena Chauí – assim como suas polêmicas com José Guilherme Merquior – e de Florestan Fernandes, podia-se acompanhar um conjunto de jovens jornalistas, críticos e articulistas que fariam história. Puxo de memória: Matinas Suzuki, Josias de Souza, Gilberto Diemenstein, Barbara Gancia, Suzana Singer, André Singer, Luís Antônio Giron, Carlos Eduardo Lins e Silva, Marcos Augusto Gonçalves, José Geraldo Couto, Nelson Ascher, Marcelo Coelho, Contardo Caligaris, Marilene Felinto, Nina Lemos, Jô Hallack, Raq Affonso. E mais: Fernando Gabeira, Joice Pascowitch e Arnaldo Jabor. Otto Lara Resende–Carlos Heitor Cony–Ruy Castro. Foi na Folha que li um breve texto de Arnaldo Antunes sobre um jogo de futebol, em 1986, com o título de Sob a lente do prazer estético.

O jornalismo mudou muito de lá para cá. Encolheu, de certa forma, e deslocou-se para as telas dos dispositivos móveis e imóveis. Dá saudades de um tempo em que o texto era mais esmerado, mesmo se sabendo que no dia seguinte as folhas de jornal estariam destinadas a embrulhar peixe. Aprendi, no entanto, que um diário é tão bom quanto mais tempo dura na mão do leitor. Cada exemplar da Folha daqueles anos permanecia dias comigo, fosse já desdobrado pela leitura, fosse em recortes arquivados.

Em paralelo a tudo isso, acompanhei a trajetória de Otavio Frias Filho, o diretor de redação do jornal desde meados dos anos 1980, o responsável direto pela marcante transformação editorial da Folha. Além desse papel, não pude deixar de também considerar a exatidão de suas breves colunas na página 2, os ensaios em veículos diversos, os textos teatrais, os editoriais. No que se refere aos últimos, de todos, e de longe, o que mais me impressiona até hoje é o do enfrentamento a Fernando Collor de Melo (“o grande desapropriador de clichês alheios”, como certa vez ele o definiu), então presidente da República. Não gosto de parte do conteúdo daquele editorial chamado Carta aberta ao sr. Presidente da República, mas, mesmo assim, por paradoxal que seja, Frias tinha toda a razão.

Nada do que Frias escreveu me impactou tanto, contudo, do que os sete ensaios de risco do livro Queda livre (Companhia das Letras, 2003). São reportagens na precisão com que descrevem e interpretam cada um dos temas – Risco de Vida, Submarino, Sexualidade, Caminho de Santiago, Suicídio, Santo Daime, Teatro –, e ensaios autobiográficos (sem biografismo) ao simultaneamente narrarem o mergulho do autor em cada um deles.

Reacionário, golpista, arrogante, entre outros adjetivos, li ou escutei sobre Frias. Discordo de tudo isso, ao mesmo tempo em que me coloco contrário a várias posições que a Folha e seu diretor de redação defenderam ao longo do tempo, principalmente nos últimos anos. Considero inaceitável, por exemplo, a expressão “ditabranda”, sobre a ditadura civil-militar brasileira. Nada disso me impede de admirar não apenas o jornal Folha de São Paulo, fundamental em um país de precários aparatos culturais de boa qualidade, como também o trabalho de seu líder por tantos anos.

Li numa entrevista com Frias que quando escrevia a coluna da página 2, as poucas linhas lhe consumiam algo em torno de uma hora, e que passavam por revisão de outra pessoa que, com frequência, encontrava erros no texto. Perfeccionismo e humildade – sim, isso mesmo – para chegar a um resultado textual esmerado. Para escrever um texto infantil excepcional, o Livro da 1ª vez. Como afirmou Marcelo Coelho, Otavio Frias Filho é [não vou mudar o verbo, a obra segue viva] uma inteligência incomparável. Fará muita falta, ainda mais em tempos tão medíocres e de abandono do pensamento.

Ilha de Santa Catarina, agosto de 2018


Imagem de destaque: Valor Econômico / Agência O Globo

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