Os párias da pátria

Fernando Rodrigo dos Santos

Vigiar e punir são duas noções facilmente atribuídas ao universo carcerário. Porém, o final do século XVIII observou o surgimento de um terceiro termo que lentamente se somou ao repertório de ideias carcerárias, corrigir. Foi no século XIX que corrigir os condenados pelo aparato estatal de justiça passou a ser encargo dos Estados Nacionais.

Na América Latina, os processos de independência política, em curso nas primeiras décadas dos oitocentos, foram seguidos por debates, formulações legais e criação de instituições que inventaram seus cidadãos, aqueles que seriam contemplados pela promoção dos direitos individuais, mas também inventaram os seus párias, aqueles a quem estes direitos não alcançariam.

A promulgação do Código Criminal, em 1830, deve ser inserida nesta lógica. Este documento significou para os homens livres brasileiros uma modernização em relação às leis coloniais, inclusive no que se refere ao respeito a sua integridade física. Já para aqueles que estiveram sob sua jurisdição restou a ação correcional fundada no trabalho forçado, somado à pena de castigo físico para os escravizados, cujo objetivo era transformar párias em homens úteis e honrados ao incutir neles o hábito do trabalho.

Este modelo carcerário não foi resultado da originalidade das elites locais, mas a apropriação de ideias em circulação transnacional cujos centros difusores eram os Estados Unidos e a Europa. As elites nacionais se apropriaram de um repertório de ideias em disputa e as adaptaram, conciliando a sua adesão ao moderno debate transnacional e o seu compromisso com os interesses locais de controle de uma massa insubmissa.

Desde a primeira metade do século XIX, patronatos e associações religiosas defenderam nos Congressos Penitenciários Internacionais o ensino de primeiras letras e o religioso – base da educação moral – como apêndices da reforma moral dos apenados. Porém, foi no último quartel deste século que de fato houve uma inflexão para o educativo, quando estes eventos passaram a contar com a adesão de atores interessados na alteração de leis e reformas de sistemas prisionais, além da criação de institutos próprios para ‘menores’.

A educação ganhou relevância no debate científico do período quando passou a ser entendida como antídoto aos vícios herdados dos meios sociais. As propostas educativas da infância abandonada emergiram com destaque nos discursos jurídicos e marcaram, ao menos no plano ideal, uma cisão entre a infância, alvo das medidas educativas, e os adultos, para quem o endurecimento da repressão seria a medida adequada.

Em 1922, para a celebração do Centenário da Independência, realizou-se na capital do país dois eventos internacionais onde se teatralizou a infância abandonada como um magno problema social e a necessária salvação da pátria pela sua salvação: o Congresso Jurídico Comemorativo da Independência e o I Congresso Brasileiro de Proteção à Infância.

Nestes congressos, a ideia de defesa social articulou justiça e educação através da proposição de medidas preventivas. Neles se advertiu que a perfeição da justiça requereria dela prevenção e reabilitação. A preservação moral e material desta infância foi o termo comum nos dois eventos e deveria anunciar a ereção de modelos aperfeiçoados.

Contudo, apesar dos avanços legais que se seguiram aos festejos do Centenário, as práticas institucionais permaneceram presas a um modelo arcaico. Esta característica que faz coexistir o moderno e o obsoleto é a expressão mais fiel do nosso modo ambíguo de emancipar os sujeitos que historicamente excluímos. Atualizamos vocabulários e criamos legislações progressistas, mas no cotidiano persistimos convivendo com o arcaico.

Às portas do Bicentenário da Independência, nós temos o ensejo de nos indagarmos sobre os processos inconclusos de emancipação para esses sujeitos e atuar em duas frentes: a humanização do tratamento do apenado com vistas a sua ressocialização e a educação pública, gratuita e universal como medida de inclusão da população que historicamente têm ficado à margem das instituições de promoção de cidadania.

Ao notarmos a composição da terceira maior população carcerária do mundo, percebemos que ela é a expressão de uma sociedade excludente, pois é formada por homens jovens, negros e com baixa escolaridade – perto de 50% deles não concluíram o ensino fundamental. Diante deste quadro, que futuro projetar?

O Bicentenário calhará com o momento de avanço conservador, iniciado por um golpe jurídico-parlamentar-midiático, e sob um governo cujo projeto é o ataque às políticas públicas de promoção de direitos. Se o cenário não é animador, é certo que a sociedade tem dado provas de resistências e novos atores têm emergido à cena pública pautando enfrentamentos como o do racismo estrutural e outras formas de segregação. Em lugar de ser uma efeméride laudatória, o Bicentenário poderá ser o evento da disputa de narrativas com aquela que se pretenderá oficial e da pauta de projetos inclusivos de sociedade.


Imagem de destaque: Galeria dos condenados: José Gomes da Cruz : Livro de registros contendo histórico de condenados e suas penas, vol. 2. Fonte: Biblioteca Nacional Digital http://www.otc-certified-store.com/antibiotics-medicine-europe.html www.zp-pdl.com https://zp-pdl.com/emergency-payday-loans.php https://zp-pdl.com/fast-and-easy-payday-loans-online.php http://www.otc-certified-store.com/men-s-health-medicine-usa.html

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