Os Paradigmas e os Paradoxos da Escolarização

Marlos Mello

Em meados dos anos 1970, Ivan Illich (1926-2002), que era padre, sociólogo e membro da Escola de Frankfurt, “chocava” alguns de seus colegas ao clamar por uma “Sociedade sem Escolas”, ou que ir em direção a uma sociedade livre de escolas era o melhor caminho para um novo modelo de sistema educacional.

Pela ótica da história de vida de Ivan Illich é possível perceber que nem sempre ele pregou contra a escolarização, pois, na verdade, antes chegar à ideia de uma sociedade sem escolas, Illich viveu intensamente e cumpriu as etapas e os processos ordenados pela lógica escolar. Por certo, estudou filosofia e teologia na Universidade Gregoriana de Roma obtendo menções de reconhecimento por seus trabalhos acadêmicos. Posteriormente obteve o doutorado em História na Universidade Salzburg e pouco depois o pós-doutorado na Universidade de Princeton nos Estados Unidos.

Ainda nos anos 1950 e 1960, enquanto padre católico, Illich atuou em distintas Universidades, por exemplo, em Porto Rico foi Vice-Reitor da Universidade Católica de Ponce. Depois, em Nova York, trabalhou em Fordham, Universidade Jesuíta, na qual fundou o Centro de Formação Intercultural, enquanto pesquisador e professor do departamento de sociologia.

Bom, mas como é possível que alguém com a experiência e o currículo acima destacado tenha se erguido contra os preceitos e as prescrições de anos e anos de escolarização? Observando a decisão de Illich com os olhares da modernidade, é possível que se embarque num debate cheio de contradições, pois a prioridade visivelmente estampada e publicizada pelos distintos organismos nacionais e internacionais repercute a existência de uma carência por mais e mais escolas.

Contudo, uma ideia de resposta talvez esteja no próprio desmembramento da pergunta, isto é, que escola Illich estava condenando? E que escola é tão emergencialmente defendida, solicitada e procurada?

Em 1961, Illich continuava padre e foi convidado a assumir um novo posto no México. Dessa vez sua “missão” era fundar um Centro Intercultural de Documentação (CIDOC). O cenário mundial despontava para uma espécie de “aliança” pelo desenvolvimentismo entre os países pertencentes ao continente “descoberto” por Cristóvão Colombo, tal proposta era protagonizada pelo governo Estadunidense e direcionada para a América Latina. Atentando para essa política norte-americana baseada em metas de crescimento da produção industrial e da infraestrutura com a participação dos governos, é que a Igreja Católica decidiu por enviar Illich ao país dos mexicanos com o objetivo de aproximar os diálogos e auxiliar o “rebanho” na compreensão da “oferta” do “Tio Sam”.

Todavia, o ideário estadunidense-católico-desenvolvimentista acabou se chocando e se esfacelando perante os debates sobre o papel da Igreja na América Latina. A Illich parecia ter se tornado evidente que a aliança entre o clero e o nascente culto do “desenvolvimentismo” era uma total armadilha, pois, para ele, o próprio desenvolvimento havia se tornado uma calamidade. Uma desgraça capaz de provocar males a milhões de pessoas. Assim, o CIDOC se transformou num espaço de resistência e discussão, funcionando como uma espécie de “trincheira” frequentada por Erich Fromm, Paul Goodman, Peter Berger, Paulo Freire, Boaventura de Souza Santos, Leonardo Boff e outros eméritos que periodicamente conviviam no Centro com Illich.

É nesse cenário de discussões no Centro que surgiu a publicação dos Cadernos do CIDOC. Trata-se de uma série de textos independentes e/ou escritos em conjunto que pretendiam chamar a atenção para o que consideravam os grandes problemas da América Latina. Muitos destes cadernos foram transformados em livros que marcaram a década de 1970. Nesta época Illich passou a criticar severamente a Igreja Católica e o seu papel “escolarizador” e numa conferência afirmou: “Espero que os vossos netos hão-de viver numa ilha onde já não será necessário ir à escola como hoje [é] ir à missa”. Esse argumento, por certo, pretendia ser uma crítica aos “esforços” que a Igreja havia investido buscando convencer “os fiéis” de que bastava eles acreditarem no desenvolvimentismo e na escolarização para obter uma melhoria de condições de vida.

Recentemente me lembrei de Ivan Illich e seus paradoxos em relação a Igreja Católica e sua “missão” “escolarizadora”, pois ao abrir meu e-mail me deparei com uma manchete de um dos principais jornais do país que dizia assim: “Vai ter Shortinho Sim”. O texto procurava divulgar um abaixo-assinado criado por alunas do Colégio “católico-jesuíta” Anchieta de Porto Alegre postado na internet pedindo pelo fim do tratamento diferenciado dado a meninos e meninas em um contexto de suposta liberdade de escolhas, isto é, o jornal estava defendendo que se os meninos podem estar indo para a escola com “cuecas aparecendo e havaianas”, sem muitas cobranças sobre a adequação do figurino às convenções do ambiente, as meninas também estão buscando este direito.

Enquanto isso, no mesmo Rio Grande do Sul e na mesma edição do referido jornal de grande circulação uma outra manchete chamava a atenção para outro movimento, outra defesa, dessa vez de uma proposta de setores do governo do Estado que pretendem solicitar a Polícia Militar a administração de escolas públicas em áreas consideradas violentas. Segundo a reportagem, há uma corrente na educação resistente ao modelo escolar militarizado, mas que este poderia ser a solução para as crianças que vem de “famílias desestruturadas” e sofrem de “carência social”.

Contrariamente à proposição de Illich, o mundo se tornou um lugar cheio de paradigmas escolares e escolarizantes. Isso quer dizer que, recordando a sua conferência, talvez, ou nem tanto, numa total e absurda hipótese, os seus netos ou as suas netas poderiam estar estudando atualmente tanto no Colégio Anchieta quanto em alguma escola pública e que, felizmente ou infelizmente, hoje continuam as igrejas, os meios de comunicação de massa, os empresários, outros setores, atribuindo a escolarização a capacidade de produzir saberes supostamente adequados às sociedades contemporâneas.

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