O Museu Nacional: memória e catástrofe

Alexandre Fernandes Vaz

Em 2009 estive na Universidade Federal de Minas Gerais para participar de uma banca de avaliação de tese de doutorado em História, a de Ana Carolina Vimieiro-Gomes. Foi dessas tardes de trabalho que valem a pena, o que não é tão comum como deveria. Ana Carolina é hoje professora daquele departamento e desenvolve uma carreira de pesquisadora das mais interessantes. Sua tese deu origem a um bonito livro publicado sob o título de Uma Ciência Moderna e Imperial: a fisiologia brasileira no final do século XIX (1880-1889). Como disse Ilana Löwy na banca de arguição, tratava-se, antes de tudo, de uma história que merecia ser contada.

Na melancólica noite do último domingo, lembrei-me imediatamente daquela tarde e do livro que dela emergiria quando chegaram as primeiras notícias sobre o incêndio que destruía o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. É que a pesquisa desenvolvida por Ana Carolina foi dedicada ao primeiro laboratório de Fisiologia Experimental do país, construído sob os auspícios do Imperador Pedro II, precisamente no Museu que agora não é mais que um monte de escombros.

O Segundo Império foi modernizador e iluminista, ao mesmo tempo em que autocrático e violento, a exemplo da repressão sangrenta a todo tipo de revolta separatista, da escorchante cobrança de impostos das províncias, do abandono de amplos setores empobrecidos, da escravidão. Do esforço de europeizar os trópicos, no entanto, fez parte o laboratório, capaz de gerar resultados com qualidade para serem apresentados, como foram, em salões científicos parisienses.

Eu já ouvira falar do Museu Nacional muito antes, ainda na juventude, lendo a revista Ciência Hoje, e logo depois ao me deparar com o livro Universo do Futebol, organizado por Roberto DaMatta. O excelente e pioneiro volume trazia, em capa dura e edição refinada, a reprodução de obras de Rubens Gerschman, artista plástico que como poucos captou uma estética do futebol. Em complexa e dispendiosa operação, via correio e cheque nominal, adquiri um exemplar numerado junto à Editora Pinakoteke, lamentavelmente extinta. Eram os primeiros anos de graduação, eu já lera DaMatta e Roque Barros Laraia na disciplina de Antropologia, de modo que a reputação do Museu Nacional já era conhecida. Pensar na cultura, e no futebol como cultura, era fascinante. Conheci DaMatta anos depois, em 2003, em uma Reunião Anual da ANPOCS. Antes, tinha visto Gilberto Velho, também um dos grandes da Antropologia nacional, em Florianópolis, quando ele discutiu com cordialidade, competência e algum humor várias pesquisas em desenvolvimento.

O departamento de Antropologia do Museu Nacional sempre foi muito importante, sua pós-graduação era o destino sonhado por muitos alunos de Ciências Sociais, caso de um vizinho de minha infância, que eu reencontrei na UFSC. Foi no Museu, também, que o antropólogo argentino Hugo Lovisolo, com quem tanto aprendi, cursou o mestrado e o doutorado, sob a orientação de Otávio Velho.

Lembro de todas essas questões para destacar que o Museu Nacional não era da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas de todos nós, inclusive dos que nunca puseram os pés nele, como eu – fato, aliás, que lamento muito e pelo qual não me perdoo. A responsabilidade pelo ocorrido é, portanto, também nossa, de cada um, principalmente os que atuamos nas universidades federais.

A catástrofe que se abateu sobre o Museu Nacional é única e não é, já que em matéria de perpetrar atrocidades contra si mesmo, o Brasil dificilmente encontra adversários à altura. Mas cada morte é única, e a do último domingo só se torna maior. Tenho a impressão de que o luto não vai ser breve. Perguntado pelo jornal português O Povo, sobre o que o fenômeno em particular lhe afetara, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro tocou em um dos pontos que considero mais chocantes:

“Como etnólogo, relativamente à colecção do Museu Nacional, significou para mim a perda de toda a memória material desses povos que foram destroçados pelo colonialismo europeu e que estavam ali como testemunhas mudas da história sinistra que foi a invasão da América pelas potências europeias”.

Eu também fiquei consternado, em especial, com a destruição dos documentos de povos já desaparecidos. Pensar que não se saberá mais como falavam, por exemplo, me parece inacreditável.  É uma característica do autoritarismo o apagamento da memória, a destruição do que passou, porque, afinal, só valeria o presente e o futuro – o passado seria puro atraso. Não mais bárbaro. A negligência, o descaso e a indiferença, com frequência temperados com cinismo, são das principais formas com que a tradição autoritária brasileira se manifesta.

Sobre o que deveria ser feito com o edifício arruinado, Viveiros de Castro foi igualmente certeiro:

“A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio.

Eu não construiria nada naquele lugar. E, sobretudo, não tentaria esconder, apagar esse evento, fingindo que nada aconteceu e tentando colocar ali um prédio moderno, um museu digital, um museu da Internet – não duvido nada que surjam com essa ideia. Gostaria que aquilo permanecesse em cinzas, em ruínas, apenas com a fachada de pé, para que todos vissem e se lembrassem. Um memorial”.

Estou de pleno acordo com sua proposta. Precisamos assumir nossa responsabilidade com a autodestruição e resistir ao apagamento da memória, da história. Se foi isso que deixamos acontecer, então que sejamos igualmente capazes de conviver com a dor que causamos. Que pelo menos respeitemos os mortos.

É muito irônico que a Independência formal do Brasil, que amanhã comemora mais um aniversário, tenha sido assinada no mesmo palácio que abrigava o Museu. O que o país precisa, mesmo, é ficar independente de sua própria mediocridade.

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2018.

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