O empresariado e a escola pública

Desde o século XIX a educação foi posta, pelas elites brasileiras, como o fator decisivo para o progresso econômico e, sobretudo, para incorporação digna do “proletariado” à vida política, econômica, cultural e social brasileira. Diziam, já naquele momento, e repetiram ao longo de todo o século XIX, que nossas vergonhosas desigualdades e a impossibilidade de uma vida democrática no Brasil era devido à falta de uma escola pública que atendesse a todos os brasileiros.

Transformada em fetiche, ou seja, numa arma ideológica contra os interesses da maioria da população, a escola passou a ser o umbral da civilização, do progresso, do desenvolvimento e do combate às desigualdades. Vãs foram os alertas daqueles e daquelas que, ao longo do tempo, disseram que não era bem assim. Que a escola era, na verdade, um dos inúmeros direitos negados às camadas populares no Brasil e não podia ser entendida como uma porta de entrada aos demais direitos. A concentração de terras, os baixos salários, a violência política e policial, as desigualdades aqui vividas não deveriam ser debitadas à falta de escolas, mas uma característica do modo de implantação e desenvolvimento do capitalismo entre nós.

Apesar desses alertas e, sobretudo, contra eles, veio sempre uma enxurrada de mensagens políticas e mediatas a reafirmar sempre e sempre a primazia da falta de escola na explicação de nossas imensas mazelas sociais. “Quando tivermos uma escola para todos, aí sim, vamos resolver os  nossos problemas sociais!”, diziam sempre!

As camadas populares, por sua vez, jamais se submeteram a esse tipo de discurso e buscaram, das maneiras mais diversas e sob regimes os mais violentos, garantir o direito a uma vida digna. A luta contra a escravidão, pela terra, pela participação política, a organização sindical, a luta por moradia, por transporte, por saúde… sempre estiveram na pauta dos movimentos sociais e sindicais, ao lado da luta por escola. Foram essas lutas todas que nos legaram, no dia de hoje, um mínimo de proteção social de que podemos nos beneficiar. Foram essas lutas, por sua vez, que lograram conquistar a tão sonhada escola para todes, pelo menos no que diz respeito ao Ensino Fundamental, já que para os demais níveis ainda estamos longe de termos todos os adultos alfabetizados, as crianças pequenas e jovens na escola, como garante a Constituição.

Como fica, então, o discurso elitista que fazia tudo depender da escola, agora que temos escola para todes? Como explicar que expandimos a escola e, ao mesmo tempo, aumentamos a concentração, as desigualdades e a violência no país?

Ora, ora. Já há muito deveríamos saber que elites como as brasileiras, que não têm dificuldade nenhuma em dar e patrocinar golpes de Estado e de apoiar um militiano como o atual Presidente para dirigir a República, não têm compromisso nenhum com as camadas mais pobres da população e que tudo fariam, e farão, para assegurar os padrões de superexploração dos trabalhadores e do meio ambiente para prosseguir lucrando e concentrando as rendas e as riquezas.

Assim, atualizando o discurso que tudo fazia depender da escola – “abra-se uma escola que uma cadeia será fechada”, diziam lá no século XIX –, agora insistem em nos fazer crer que o problema é que não é mais a falta da escola, mas a falta de qualidade da escola. Ou seja, o discurso articulado pelo empresariado, elaborado pelas suas fundações e disseminado pelas suas mídias é que, mais uma vez, as camadas populares não souberam diferenciar o joio do trigo e que compraram gato por lebre. A escola conquistada, dizem, não é mais aquela escola que resolveria todos os problemas do Brasil; não é mais a escola que nós e nossos filhos frequentamos e, por isso, somos o que somos!

Os movimentos e ativistas sociais por uma escola de qualidade socialmente referenciada e para todes não podem, por suposto, cair no engodo que o grande problema da escola pública brasileira é que a ela falta qualidade. Os discursos empresariais sobre os rankings mundiais que apontam a baixa qualidade da escola brasileira quase nunca a comparam  com  a posição do Brasil nos rankings das  desigualdades. O grande problema da escola brasileira são as imensas desigualdades e não cabe à escola sozinha resolvê-lo.

Nesse perverso discurso, a escola conquistada pelas camadas populares é uma escola que foi esvaziada de qualidade justamente pelo Estado, que deveria zelar pela sua qualidade. Por isso, não demorou a disseminar, também, o discurso que a escola pública, financiada com recursos públicos, somente terá qualidade se for gerida de modo empresarial, ou seja, se seguir a lógica do capital. Desse modo, o empresariado que, ao longo de nossa história, muito pouco se  movimentou para que tivéssemos uma escola para todes, quer, agora, ganhar duplamente com  a árdua conquista dos trabalhadores e das trabalhadoras: querem gerir a escola, que nada fizeram para construir, segundo seus interesses e querem ganhar dinheiro público com isso.


Imagem de destaque: Edu Oliveira / Arte ZH

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