O Diabo, a Literatura Fantástica e a Economia

Rafael Muller

Que explicações criaríamos se o diabo e sua comitiva aparecessem entre os homens e executassem uma série de atrocidades às pessoas e às cidades?

Bulgákov, no epílogo de O Mestre e a Margarida (história cujo enredo narra a passagem do diabo Woland e sua comitiva pelas ruas de Moscou), larga uma dupla-hipótese: (a) de um lado, boatos sobrenaturais mais incríveis que correriam rapidamente pela cidade e para além dela; (b) de outro, no meio de pessoas “mais desenvolvidas e mais cultas”, uma explicação segundo a ordem das ciências naturais em que se trataria de “uma quadrilha de hipnotizadores e ventríloquos, que dominava maravilhosamente bem a sua arte” (BULGÁKOV, 2011, p. 294).

Tão pouco crível quanto os boatos é a explicação dada pela “racionalidade”, uma vez que tal tipo de quadrilha seria altamente improvável. A literatura fantástica, entretanto, tem por característica exatamente essa indecidibilidade entre explicações naturais e sobrenaturais para os fatos narrados, deixando ao leitor as mais diversas opções de leitura do mundo (TODOROV, 2010). 

O texto literário fantástico é, nessa perspectiva, cético: não oferece resposta absoluta à pergunta. Essa característica possui uma função pedagógica importante exatamente porque a indecidibilidade permite ao leitor não crer absolutamente em nenhuma das hipóteses, podendo partir para leituras mais abrangentes do mundo ficcional, que dê conta da multiplicidade de eventos que ocorrem no enredo. A resposta para os fatos não existe no texto que é apresentado, ela precisa ser construída.

Mostrar que as coisas do mundo real não são tais quais organizadas nos discursos prontos oficiais é outra das funções pedagógicas da literatura satírica de Bulgákov. Isso fica explícito em uma passagem logo ao início do texto, quando diferentes instituições apresentam informes sobre a pessoa do diabo Woland. Um dos informes dizia se tratar de um sujeito baixo e manco da perna direita; outro, um sujeito alto e manco da perna esquerda; e um terceiro, um sujeito comum, sem quaisquer características marcantes. Em face dos três informes, conclui: “Deve-se reconhecer que nenhum desses informes valia coisa alguma” (BULGÁKOV, 2011, p. 11). A indecidibilidade entre os conteúdos dos informes retira a credibilidade de todos eles, escancarando a parcialidade e a subjetividade de todas as informações.

Partamos, então, para um exercício contemporâneo: fato é fato que empresas estão quebrando, pessoas estão desempregadas e passando fome, enquanto bancos lucram. Que explicações estamos dando enquanto o diabo caminha com sua comitiva por cima do Brasil? A crise econômica que assola o país seria fruto do diabo ou de uma quadrilha de hipnotizadores? 

Um primeiro informe no pacto ficcional da narrativa imposta hegemonicamente pelo governo federal e centenas de banqueiros e economistas liberais é de que a crise econômica seria decorrente da crise sanitária do coronavírus, sem responsáveis diretos e fruto do acaso – obra do diabo. A salvação econômica, na mesma linha, viria apenas da vacinação em massa. Doutro lado, em interpretação “racional”, a crise seria decorrente de um suposto excesso de gastos públicos e do alto custo do Estado, sendo necessárias medidas de austeridade, privatizações e a redução do papel do Estado na economia.

Deve-se reconhecer que nenhum desses informes vale coisa alguma. Esses tipos de discursos ignoram fatos importantes, como por exemplo: o retorno produtivo dos investimentos em educação, o custo da política monetária do Banco Central, a remuneração da sobra de caixa dos bancos e o funcionamento do Sistema da Dívida Pública como correia de transmissão de recursos públicos para o setor financeiro – justificando a necessidade de uma verdadeira auditoria da dívida pública.

Não é a literatura satírica e fantástica que oferece respostas prontas às coisas do mundo. Entretanto, ao ser cética, fornece um método epistemológico abrangente para se abordar a realidade: não se crendo em verdades absolutas, toda sorte de possibilidades alternativas se abre, o que nos estimula a buscar mais informações sobre qualquer temática de interesse. 

Ao fim e ao cabo, podemos construir uma nova filosofia libertadora a partir do ceticismo: ao não crer em pequenas “verdades” absolutas conhecidas (informes, discursos prontos), podemos crer que o conhecimento global não é acessível, e posicionarmo-nos apesar das incertezas pontuais. Antes de crer, creríamos, como diria Shakespeare, que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia.

 

Para saber mais: 

BULGÁKOV, Mikhail. O mestre e margarida. Rio de Janeiro (RJ): Objetiva, 2011.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo (SP): Perspectiva, 2010. 


Imagem de destaque: Companhia das letras

 

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