“Nem todas as crianças vingam”: o enlutar das maternidades negras interrompidas

Tayanne Adrian Santana Morais da Silva¹

Estou grávida, meu senhor! – exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! (MACHADO DE ASSIS, 1906, grifo nosso).

A súplica de Arminda, personagem de “Pai Contra Mãe”, conto machadiano de 1906, resguarda as dores de uma maternidade negra violentamente interrompida. Publicado dezoito anos após a “abolição” da escravização dos povos negros no Brasil, o conto perpassa a vida do “caçador de escravos fujões”, Cândido Neves, homem branco e pobre que se vê às voltas com a impossibilidade de conferir uma vida digna ao filho que pesava em seus braços e no orçamento familiar. No caminho entre sua casa e a Roda dos Enjeitados – destino que daria ao seu rebento –, Cândido cruza os caminhos de Arminda, escravizada, fugida e grávida, cuja recaptura valia 100 mil réis. Ao se encontrar novamente sob o julgo daquele que lhe daria açoites se nela pusesse os olhos outra vez, Arminda sofre um aborto na frente dos homens que, respaldados na permissividade do Estado, assistem impassíveis a morte de mais um corpo negro, enquanto Cândido, com seu pagamento no bolso, volta para casa com seu filho no braço. Não se trata, apenas, de um conto. Em impressos do século XIX, como no Diário de Pernambuco ed.120, de 1829, lia-se sobre a venda de “huma escrava, parida, da primeira barriga, própria para criar, com bom leite e sem filho: na rua do Rozario Botica D. 11”. 

A escravização da população negra atravessou quatro séculos em solo brasileiro até que fosse “abolida”, em maio de 1888. O sistema escravocrata, dentre outras consequências, obstaculizou o exercício de uma maternidade digna às mulheres negras escravizadas, mediante o impedimento da construção de seus próprios laços reprodutivos-afetivos. Não raras foram as cenas das mães pretas que, a exemplo de Arminda, tiveram seus filhos mortos diante da violência que acometia seus corpos e os corpos dos seus. Frequentes foram os casos das mães pretas que ao servirem de amas de leite, tal qual a moça parida do Diário de Pernambuco, ed.148, do ano de 1833, tiveram seus filhos arrancados de seu seio e viram seu “bom leite” secar pela boca dos filhos de seus senhores. Comuns foram e ainda são as dores das mães pretas que mesmo depois de libertas, que por sua invisibilidade nas políticas públicas, se viram impedidas de criar sua prole.   

“[…] eu que era escrava requeri para ser forra na conformidade da lei […] como eu moro perto dele e depois da minha forria tenha parido trez lindos mulatinhos, a mente dele he recolonizar […] muito tinha a dizer sobre o caracter deste Portuguez mais o silencio por hora me convém: e somente faço este para que o publico fique entendido das intenções do meu antagonista. A parda que não pode ser mais captiva, Anna Maria” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, ed. 148, 1833, grifo nosso).

Não obstante, na esteira de narrativas sobre essas maternidades negras, o registro aqui trazido ilustra ainda o trabalho pela emancipação de si e dos seus protagonizados por mulheres negras escravizadas e forras, desvelando a pluralidade de suas (re)existências e indo além do dualismo vítima negra versus algozes brancos. Vivências de mulheres-mães que, ora por meios legais, ora através das fugas e enfrentamentos físicos, exploraram as possibilidades de emancipação, inclusive de sua família, mesmo dentro de um contexto que obstava a manutenção de seus laços afetivos. Carregando consigo poucas possibilidades de sucesso em suas empreitadas, muitas mães pretas fugiram com seus rebentos, configurando, com isso, uma espécie de enfrentamento à interdição de suas maternidades preconizado pelo sistema escravista. Nas auroras do abolicionismo, sobretudo com a efeméride da Independência do Brasil (1822), a exemplo de Anna Maria, caso noticiado pela imprensa em terras pernambucanas, muitas questionaram o que queriam para o país aqueles que não podiam “ver com olhos enxutos seus actos de liberdade”, expondo seus antagonistas à opinião pública e denunciando o interesse de escravizar seus filhos e interromper suas maternidades através do cerceamento de suas liberdades. Débora Maria da Silva, fundadora do movimento “Mães de Maio”, em entrevista ao El País, em 08 de maio de 2021, declarou não ter o que temer e estar “nesse front e luta há 15 anos para pedir que o Estado brasileiro se responsabilize pela morte dos nossos filhos”. 

Tão atual e não menos dolorosas quanto às precariedades e insurgências no exercício da maternidade experimentada por essas mulheres-mães, são as realidades daquelas cujos filhos foram mortos pelo braço armado do Estado sob a ventriloquia do racismo institucional, herança do sistema escravista no Brasil. São muitas Deboras, Vanessas e Rafaelas que viram seus Edsons, suas Ágathas e seus Joãos Pedros serem levados por aqueles que, assim como os algozes da Arminda de Machado de Assis, tiveram respaldo na permissividade do Estado, visto que tiveram a permissão para efetuar as chamadas operações de “pacificação das favelas”, vitimando, nesse ínterim, seus filhos. Dados do Atlas da Violência de 2019 trazem em números as dores dessas mães ao apontar que do total de assassinatos cometidos em 2017, 75,5% das pessoas mortas eram negras. Têm-se no Brasil um coletivo de mulheres que carregam as marcas forjadas na violência desses crimes praticados contra adolescentes e jovens negros.

Sob o medo de terem seus filhos confundidos com “bandidos”, evidencia-se nos discursos, através de sentenças já conhecidas por muitos jovens negros brasileiros – tais como “não esqueça o RG quando sair” e “não responda à polícia” – uma complexa rede de elementos que submete a mulher-mãe negra da atualidade à uma condição de opressão semelhante àquela vivenciada pelas mães escravizadas, tendo em vista que às contemporâneas também é negado o pleno acesso às escolhas e às possiblidades, o que, segundo bell hooks em Intelectuais negras, se constitui na opressão em sua forma mais latente. São mulheres que mesmo no pós-abolição, choram os que se foram e seguem lutando pelo direito de serem mães de filhos vivos. Ao se aproximar da atuação destas mulheres têm-se uma gama de experiências de negociação e organização em prol da responsabilização do Estado e pela punição de seus “criminosos legais”. 

Se, historicamente, têm-se a os choros dessas mães pretas, o que esse coletivo de mulheres fez e faz é reivindicar o seu direito à maternidade digna e o direito às vidas de seus filhos, ressignificando suas experiências maternas mediante conjunturas de violência extrema, tal qual afirma Patricia Hill Collins em seu livro intitulado “Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do emponderamento”. Vítimas (in)diretas do racismo estrutural e institucional, as maternidades interrompidas dessas mães, nesse sentido, faz parte de uma narrativa de insurgências e resistências de mulheres negras que ao verem recair sobre si a sentença do conto machadiano de que “nem todas as crianças sobrevivem”, continuam em luta, em luto e em marcha por si, pelos seus e pelos das outras.

Em memória de Edson Rogério Silva dos Santos, vítima dos Crimes de Maio; Ágatha Félix, morta a tiro quando voltava para a casa com a mãe, no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro; João Pedro, baleado dentro de casa durante operação policial no Salgueiro, Rio de Janeiro. Em profunda admiração e respeito por suas mães, Débora Maria da Silva, Vanessa Sales Félix e Rafaela Matos. Por fim, em imenso carinho e solidariedade por Mirtes Renata, pernambucana que, embora não tenha perdido seu filho Miguel para a violência policial, viu seu filho deixar esse mundo ao cair do 9º andar de um edifício de luxo na cidade do Recife, Pernambuco, mediante a violenta negligência do racismo ao qual são submetidas muitas de nossas crianças negras.

1Licenciada em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestranda na Linha de Filosofia e História da Educação do Programa de Pós Graduação em Educação (PPGEdu) do Centro de Educação da UFPE. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinar em Formação Humana, Representações e Identidades (GEPIFHRI). Contato: tayanne_morasi16@hotmail.com.


Imagem de Destaque: Museu de Arte da Bahia. Lucílio de Albuquerque, 1912.

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