Nem ternos comprados em Miami podem cobrir o desnudamento do projeto privatista representado por Alkmin e Nalini

Ana Luiza Jesus da Costa

Pode um Secretário de Estado de Educação defender publicamente, na página oficial de sua secretaria, que a educação não deve ser um direito social e um dever do Estado? Podendo ou não, esse é o teor do texto “A sociedade órfã”, escrito por José Renato Nalini que vai de encontro ao sólido consenso criado pelo mundo moderno em torno da necessidade e, um pouco mais tarde, do direito à educação. Sem evocar as clássicas e necessárias perguntas formuladas por Paulo Freire: que educação; a favor de que e a favor de quem; contra que e contra quem; constatamos que, pelo menos desde o século XIX, tem se criado o acordo sobre a positividade da educação e o dever do poder público em garanti-la. Mesmo em momentos ultraconservadores da história nacional, como a Ditadura civil militar, ela esteve inscrita como direito constitucional: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola” (Art. 168, Constituição de 1967). Nesse momento, porém, a própria lei, amparada pelos fuzis do regime, ampliou grandemente a abertura à infiltração privatista no Estado brasileiro, quando assegurava, no parágrafo segundo do mesmo artigo que, “o ensino é livre à Iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive [por] bolsas de estudo”.

A lógica do privatismo está na formação de nossa sociedade desde o período colonial e se infiltrou no âmago do Estado brasileiro, mesmo quando ele precisou discipliná-la para constituir-se como poder público, quando da arquitetura do Estado Imperial. Houve momentos de maior disciplinamento da voracidade do poder privado, durante, por exemplo, a Era Vargas. Não à toa foi a “herança varguista” de um Estado regulador das tensões sociais, que a ditadura civil militar instalada em 1964 e, após o pacto de abertura democrática, os sucessivos presidentes da chamada Nova República quiseram apagar. Estamos voltando à lógica da República Oligárquica, quando a “questão social” era caso de polícia.

O texto apresentado na página da Secretaria Estadual de Educação não está desligado de outras manifestações da lógica privatista como, em nível econômico, a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada por meio do pagamento de juros da dívida pública; as isenções fiscais que favorecem grandes empresas; as parcerias público-privadas em vários âmbitos da ação do Estado. Mas, também em nível ideológico, em projetos de lei como o assustador “Escola sem Partido” que tramita em várias câmaras estaduais e municipais e determina que professores e outros membros das comunidades escolares não podem abordar temas tocantes à política, religião e gênero em sala de aula. Essa determinação se faz em nome “[do respeito] ao direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. No nível político institucional, o mesmo privatismo se fez tragicamente claro nas declarações de voto dos deputados federais durante o julgamento do processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef, solenidade em que os ilustres representantes da nação dedicaram seus votos às suas famílias, esposas e amigos.

O privatismo não é só uma racionalidade econômica, mas uma visão de mundo. Um mundo onde “os fracos não tem vez”. E quem são os fracos? Qualquer ser humano nasce fraco. Nascemos muitíssimo vulneráveis e precisamos ser providos de tudo, e tudo nos precisa ser ensinado. Da mesma forma, quando envelhecemos, precisamos do amparo e provimento de nossa comunidade. Aqueles que, ao chegar ao mundo, por uma série de circunstâncias históricas, herdam bens e conforto, condições para se desenvolverem, tendem a se tornar mais fortes, o que lhes daria o poder de solapar os outros, num mundo onde os outros não têm direitos. Os “fortes” concretizariam o destino de tornarem-se (ou manterem-se?) ricos e felizes, o que, segundo Nalini, nas últimas linhas do texto aqui analisado, não é para todos.

Entretanto, o Sr. Secretário, ao deixar implícita sua defesa de uma precedência do poder privado, não defende a extinção do Estado, mesmo porque, dessa forma, perderia seu emprego. Se sua defesa fosse consequente, anularia a legitimidade de seus diplomas de mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo, uma Universidade Pública. Um Estado mínimo está longe de representar maiores liberdades para o povo, especialmente para o povo trabalhador. Esta construção – Estado mínimo – quer dizer mínimo compromisso e investimento em áreas sociais como educação, saúde, previdência, direitos trabalhistas, etc.; e máximo investimento no aparato repressivo e jurídico para defesa da propriedade privada.

O privatista só enxerga o que quer. Suas ideias não correspondem aos fatos, como dizia o poeta Cazuza. Enxerga o que chama de “anomia social”, uma crise de valores em função da perda das referências da figura paterna, da Igreja e da Escola. Ele ignora modelos de família diferentes da nuclear (pai, mãe, filhos) cujo pai é o chefe. Ignora que muitos pais abandonam suas famílias e as mulheres precisam arcar com toda a responsabilidade da criação dos filhos. Ignora famílias centradas em relações homoafetivas e ignora laços familiares mais extensos que este pequeno núcleo. Só consegue pensar em Igreja no singular e resume educação à escola, escola esta que deseja negar aos que por ela não possam pagar.

Enxerga também um “welfare state”, um “estado tentacular, interventor”, um “estado babá” que, para sustentar a suposta proliferação de direitos a uma “legião ávida por assistência integral” “desde o pré-natal à sepultura”, “agrava a arrecadação, penaliza o contribuinte, inventa tributos e é inflexível ao cobrá-los”. Esta “legião”, teria se acostumado a reivindicar tudo o que antigamente era fruto do trabalho, esforço e empenho. Nesta imagem de um povo acomodado, agindo de má fé para obter vantagens do Estado, o privatista ignora que nunca houve efetivamente estado de bem estar social no Brasil; que a legislação social de proteção ao trabalhador foi uma maneira do Estado mediar conflitos numa sociedade capitalista extremamente exploratória onde o capital desfruta de muitíssimas vantagens sobre o trabalho; que esta mesma legislação está sendo cada vez mais encolhida; que os índices de sonegação fiscal pelo grande capital são altíssimos. Ignora e tripudia da mulher trabalhadora com sua dupla, ou tripla jornada de trabalho. Tripudia do estudante trabalhador que, de noite, vai para escola com esperanças de melhorar a vida e vê ameaçada pela secretaria de estado a modalidade que o atende, a Educação de Jovens e Adultos, cada vez mais precarizada na rede.

Foi, porém, ao mesmo Estado que precisa abandonar sua vocação de babá, a quem o secretário “reivindicou” um aumento de subsídios para que os juízes do Tribunal de Justiça de São Paulo pudessem comprar seus ternos em Miami. Enfim, tais contradições só expõe o egoísmo do privatismo que, não pode compartilhar a vida com o outro, e, no limite, sente-se no direito de eliminá-lo. Limite este em que têm vivido as periferias de São Paulo, onde chacinas como a ocorrida em Osasco e região, no ano de 2015, com suspeita de envolvimento policial, continuam sem apuração e sem punição.

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