Memórias da Escola – 16

Cleide Maria Maciel de Melo

Primeiro dia de aula! As crianças se dirigem para a classe que lhes é designada, tão logo ouvem seus nomes. Pouco a pouco, os corredores vão ficando vazios… Nas salas, onde cada professora já esperava sua turma, é hora de começar o ano!

Via de regra, a primeira atividade é a chamada (houve uma época em que primeiro se fazia uma reza: uma oração da igreja católica apostólica romana, “puxada” pela professora e respondida ou acompanhada pelos alunos). À pronúncia do nome de cada aluno, seguem os movimentos dos olhos – da lista, para a carteira de onde partiu a voz que responde Presente! Esse gesto confirma rostos já conhecidos ou faz o (re)conhecimento dos novatos na escola.

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Naquela inauguração do período letivo o ritual não tinha sido diferente dos outros anos. A entrada abrupta de uma das professoras na sala da direção, indicou quebra na rotina. Com o rosto vermelho, expressão indignada, voz alterada, movimentos agitados dos braços, ela falava da sua discordância sobre o processo de organização das turmas. É que estava lá uma criança que não daria conta, ela “sabia”!

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No grupo escolar, o processo de enturmação para as turmas de 2ª, 3ª e 4ª séries, seguia os resultados das provas finais dos anos anteriores. Na primeira série, observava-se a avaliação realizada ao final da pré-escola. As crianças, cuja escolaridade se iniciava diretamente no primeiro ano, já tinham seu destino: nunca iniciariam o ano numa turma de “classificação superior”! Que classificação era esta? Os melhores alunos, ficavam nas turmas A; em segundo lugar, turma B; em seguida, C, e assim por diante…

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Ela era a professora da 2ª série A. Os melhores alunos, todos dentro da faixa etária de escolarização (8 anos), todos economicamente bem providos, todos brancos. Ah, todos também, recebiam ajuda em casa, na realização das tarefas extra-classe. Todos aprovados para a 3ª série, ao final do ano. Ela não retornaria para a sala de aula, até que aquele menino “fraco” fosse removido para outra turma! O que ela não disse: – “Aquele”, era um menino negro!!!

O menininho foi parar na minha turma (2ª série B). Na época, as questões raciais não representavam para mim um problema. Pensei tratar-se de uma criança que, de fato, ia mais devagar na aprendizagem… mas não foi o que aconteceu. Desde as primeiras aulas, esse menino, sempre atento, aprendia tudo que eu ensinava. Seus exercícios – continhas, problemas, ditados e outros – estavam sempre corretos. Suas redações, bem escritas. Nas provas, os melhores resultados. Entretanto, nas atividades de linguagem oral, sua participação era negativa. Foi um custo ouvir sua voz pela primeira vez. Talvez, se eu fizesse um esforço, conseguisse lembrar as situações em que ele falou, tão poucas foram… À medida que esse menininho ia me surpreendendo com sua facilidade em aprender os conteúdos curriculares mais me convencia de que ele havia sido vítima de um preconceito!

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Há pouco li o Na minha pele, do ator Lázaro Ramos. Livro que está entre os mais vendidos, faz um mergulho na condição de quem vivenciou o preconceito racial e se fortalece no reconhecimento de suas origens e na constante reflexão sobre o tema. Comecei a ler e não conseguia parar… Confesso que o livro me levou a pensar sobre as questões raciais a partir de novos/outros ângulos. Muitas experiências me vieram à lembrança…

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Como será que aquele menininho vivenciou aquela experiência de preconceito? Ele se deu conta do que aconteceu? Ir para a minha turma, ficar comigo, fez alguma diferença?

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